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terça-feira, 1 de outubro de 2013

Direito de Vizinhança e Tolerância

Lendo recentes decisões sobre assuntos jurídicos, chamou-me a atenção um julgado que trata acerca do tema "direito de vizinhança". A discussão central diz respeito à extensão, a seu acompanhante, do direito de servidão de passagem concedido judicialmente (em demanda pretérita) a uma senhora com idade avançada e portadora de problemas de saúde.

Ao tratar sobre passagem forçada, o Código Civil de 2002 assim prevê:

Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.
§ 1o Sofrerá o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem.

No caso em tela, a idosa ajuizou ação visando a passagem forçada no terreno do vizinho. Importante dizer que para a concessão da servidão, a lei determina que  o imóvel da pessoa que requer o benefício seja "encravado" (não possui saída para a via pública ou que para promover sua abertura seja necessário despender um valor bastante elevado).

Muito embora o terreno da Autora não se enquadrasse no conceito de encravado, o Judiciário deferiu a servidão de passagem gratuita à idosa por razões humanitárias, em face de seu delicado estado de saúde, eis que seu imóvel não oferecia as melhores condições para a sua locomoção e a melhor alternativa era a passagem pelo imóvel lindeiro, cujo acesso vinha sendo obstaculizado pelo vizinho.

Não obstante a decisão que lhe foi favorável tenha transitado em julgado (ou seja, não mais passível de recurso), tempos depois o vizinho passou a impedir o cônjuge da idosa a transitar em seu terreno. Uma vez que este não foi beneficiado pela primeira demanda (ajuizada apenas em nome da esposa), o mesmo teve que ingressar com nova ação para assegurar o direito de acompanhá-la, já que a idosa não podia mover-se sozinha.

Tal qual a demanda anterior, esta também obteve decisão favorável do Poder Judiciário, tendo o STJ proferido a decisão final acerca da controvérsia. Do acórdão de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, destacamos o seguinte trecho:


Ora, em situações excepcionais, o julgador deve mesmo se desgarrar das amarras estreitas do formalismo jurídico, não para se utilizar de arbitrariedade, mas para dar humanismo à letra fria da lei. Essa é tipicamente uma dessas situações, em que somos surpreendidos pela perplexidade de alcançar a Corte Superior um processo em que se discute essencialmente desentendimentos entre vizinhos, em especial quando se envolve questões humanitárias que deveriam despertar sentimentos de compaixão e solidariedade.

 

É mais que razoável, é esperado que uma pessoa adoentada, portadora de “hérnia de grandes proporções” , não transite desacompanhada. E é absolutamente irracional a pretensão de que ela transite pela passagem sozinha, judicialmente garantida para facilitar-lhe o acesso e a locomoção, enquanto seu cônjuge ou qualquer outra pessoa que a acompanhe deva utilizar o caminho regular.

Sob essa ótica, causa perplexidade a utilização do Estado-Juiz para a busca de vendeta pessoal, completamente desgarrada de proveito jurídico, ou quiçá econômico, pois a restrição de acesso aos acompanhantes da favorecida pela servidão de uso, não objetiva fim juridicamente sólido.

Questionável, inclusive, a própria resistência inicial da parte à utilização da passagem pela companheira do recorrido, pois demonstra inaceitável desconsideração com os mais comezinhos princípios que regem as relações sociais, dos quais se deveria extrair a sobriedade necessária para a composição e, porventura, para a mera aquiescência do pleito inicial de trânsito, por reconhecido motivo de doença, pela propriedade do recorrente.

Assim como em todas as relações existentes em sociedade, aquelas havidas entre vizinhos também devem ser permeadas pelos princípios da solidariedade e da dignidade humana. Tolerância, aceitação, cooperação, humanidade e compaixão são características que devem ser cultivadas e aperfeiçoadas para a melhor convivência entre as pessoas, especialmente quando a proximidade é tamanha.  

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Recurso Especial n.º 1.370.210 - RJ


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