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terça-feira, 24 de maio de 2022

Direito Penal e Reconhecimento Fotográfico

Sempre que um crime é cometido, faz-se necessária a identificação do autor do fato. Nas ocasiões em que se proceder ao reconhecimento de pessoa, algumas regras deverão ser observadas, nos termos do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP):

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Recentemente foi noticiado que, no período de 01 (um) ano - outubro/2020 a dezembro/2021 -, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reverteu 89 condenações por irregularidades na identificação dos suspeitos. Conforme levantamento realizado pela Corte, na maioria dos casos o reconhecimento foi apenas fotográfico - ou seja, a suposta prova da autoria foi baseada apenas em imagens (que atualmente podem ser extraídas de redes sociais) -, o que vai contra o texto legal e resultou nas mencionadas absolvições e revogações de prisões.

A inobservância do procedimento descrito no artigo 226 do CPP é apta a ensejar injustiças. O reconhecimento meramente fotográfico (estático) exclui uma série de características pessoais que somente uma descrição pode informar: porte físico (peso, altura), trejeitos e expressões, sinais de nascença, tatuagens, eventual deficiência física, etc. Da mesma forma, deixar de colocar o suspeito ao lado de pessoas que com ele se parecem pode acabar por direcionar/ sugestionar vítima(s) e testemunha(s).

Importante lembrar que o sistema penitenciário brasileiro já foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um "estado de coisas inconstitucional." Somado ao alto índice de inocentes condenados injustamente no país, temos que a aplicação literal e obrigatória do artigo 226 do CPP mostra-se de vital importância para que se evitem erros judiciários graves, cujas consequências podem ser irreversíveis.

Decisão paradigmática foi proferida quando do julgamento do HC 598.886, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, a qual alterou a jurisprudência até então preponderante no STJ: o não atendimento aos ditames do artigo 226 do CPP invalida o reconhecimento do acusado feito em delegacia (em sede inquisitorial), não podendo servir de base para a sua condenação, ainda que confirmado na fase judicial. Assim, mostra-se imprescindível que outras provas submetidas ao contraditório a corroborem: reconhecimento presencial (sempre que possível), depoimentos, apreensão do produto do roubo ou furto, ou da arma do crime, entre outras.

Segue importante e elucidativo trecho da ementa do acórdão para conhecimento:


"(...) 2. Segundo estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis.

3. O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de "mera recomendação" do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório.

4. O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato. (...)"


domingo, 15 de maio de 2022

Teoria do Multiverso x Realidade do Metaverso

Quem acompanha o universo cinematográfico de super-heróis da Marvel Studios já está familiarizado com o conceito de multiverso. Em longas-metragens recentes como Doutor Estranho e Homem Aranha (Longe de Casa, Sem Volta para Casa), somos apresentados a uma coleção de universos alternativos e paralelos, criados a partir de um evento que possui diferentes resultados possíveis (cada um deles dando origem a um novo universo ou dimensão, que podem ser infinitos) ou de viagens no tempo. Pura teoria. 

Já o metaverso é um conceito que se popularizou com a alteração do nome Facebook para Meta no final de 2021: trata-se de um universo virtual 3D que provavelmente será o futuro da Internet e irá revolucionar a forma com que as pessoas lidam com o espaço cibernético. Aqui, temos o universo online e o offline conectados e completamente dependentes entre si: nesse mundo digital, cada pessoa no mundo físico possui a sua própria identidade digital, ou seja, seu avatar, único e exclusivo. Pura realidade.

Nesse brand new world, as pessoas, através de seus avatares, terão uma vida semelhante à atual: poderão interagir, manter relacionamentos, trabalhar, negociar, praticar esportes, ter momentos de lazer e diversão, em ambientes criados por avançada inteligência artificial. Essa realidade virtual poderá ser acessada por sensores de movimentos (como o Xbox) e também por óculos de imersão em vídeo, de modo a que a pessoa efetivamente se sinta dentro daquele universo. Em que pese a existência de conceitos como o da realidade aumentada (vide Pokémon GO), efeitos visuais, hologramas e projeções especiais, os humanos seguirão existindo e interagindo na realidade física terrena, e não serão mágica e instantaneamente transportadas (através do tempo e do espaço) para um universo virtual.

No mundo jurídico, escritórios de advocacia poderão lançar suas sedes no metaverso com todas as características (sala de espera, gabinetes dos advogados, sala de reunião) de um escritório real. Após esse período de 02 (dois) anos de pandemia, em que encontros de trabalho, audiências, videoconferências e eventos jurídicos foram amplamente realizados através de plataformas como o Google Meet e o Zoom, é possível especular que essa conexão com o mundo virtual seguirá se acentuando? Como será construído o avatar que irá nos representar no metaverso? Por se tratar de uma extensão da pessoa humana, com seus direitos de personalidade, haverá proteção jurídica semelhante à do mundo da matéria? 

Será que a ficção científica está se tornando realidade? Para quem achava que os episódios da distópica série Black Mirror (Netflix) eram algo completamente absurdo, ilógico e irreal, a verdade é que muitos dos contos apresentados que eram tidos como absolutamente fictícios acabaram se concretizando muito antes do que o (pouco ou nada) esperado. De qualquer forma, para que possamos começar a ter algumas respostas aos muitos questionamentos sobre como serão as relações no metaverso - e, quem sabe um dia, no (até então) fictício multiverso -, teremos que aguardar a intensificação dessas interações entre o mundo real e o virtual.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Ilegalidade da Coparticipação em Home Care

Home care é uma modalidade de tratamento médico que consiste no acompanhamento do paciente em sua residência nos casos em que não se mostra imprescindível o internamento hospitalar ou quando, após a alta, o paciente segue necessitando de cuidados especiais e tratamento diferenciado. Em 2012 escrevemos sobre o tema aqui no BLoG - Plano de Saúde e Internação Domiciliar.

Inicialmente, é de se consignar que existem duas modalidades de home care:

* assistência domiciliar = conjunto de atividades de caráter ambulatorial, programadas e continuadas desenvolvidas em domicílio;

* internação domiciliar = conjunto de atividades prestadas no domicílio, caracterizadas pela atenção em tempo integral ao paciente com quadro clínico mais complexo e com necessidade de tecnologia especializada. 

Além dos serviços médicos e de enfermagem, o atendimento domiciliar poderá englobar equipe multidisciplinar com especialistas nas áreas da fisioterapia, nutrição, fonoaudiologia e terapia ocupacional.

Recentemente, a 3.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu pela ilegalidade da cláusula de contrato de plano de saúde que determina a cobrança de percentual, a título de coparticipação, do conveniado nos casos de internação domiciliar. No caso julgado, a Operadora havia negado a cobertura do serviço 24 (vinte e quatro) horas por dia, alegando que a beneficiária não atendia aos critérios para a concessão - razão pela qual foi cobrada a coparticipação.

Ocorre que, como bem reconhecido já nas instâncias inferiores, se a doença possui cobertura contratual, a mera alteração do local em que o tratamento será realizado não exclui o dever do plano de saúde em arcar com os custos correspondentes.

Conforme voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi, não obstante o artigo 16, VIII, da Lei dos Planos de Saúde (Lei n.º 9.656/98) autorize a cobrança de coparticipação dos conveniados quanto ao pagamento de despesas médicas específicas, esta obrigação deverá estar contida de forma clara e expressa no contrato - todavia, essa cobrança é vedada nos casos de internação, exceto para os eventos relacionados à saúde mental.

Importante ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça já possui entendimento sedimentado no sentido de que há "possibilidade do plano de saúde estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura de cada uma delas" e que "é abusiva a negativa de cobertura pelo plano de saúde de procedimento, tratamento, medicamento ou material considerado essencial para preservar a saúde e a vida do paciente". (AgRg no Ag 1.325.939).