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terça-feira, 23 de maio de 2023

Troca de Bebês e Coleta de Material Genético

Recentemente, o plenário do Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre o seguinte tema: a constitucionalidade (ou não) de lei estadual fluminense que determinava aos hospitais, casas de saúde e maternidades a coletar, obrigatoriamente, material genético (DNA) das mães e de seus bebês por ocasião do parto. Tal medida, conforme texto legal, tinha como intento evitar a troca de recém-nascidos nos estabelecimentos. Assim, de modo a garantir a segurança dos envolvidos, o material genético - extraído de forma compulsória, ou seja, mesmo sem consentimento prévio, livre e informado das partes - ficaria armazenado em bancos de dados situados nas unidades de saúde. 

Levando em consideração o novo direito constitucional fundamental à proteção de dados pessoais (artigo 5.º, inciso LXXIX da CF/88), bem como o fato de que os dados genéticos são considerados dados sensíveis - ou seja, demandam um cuidado ainda maior em sua proteção -, a Corte Superior, por unanimidade, julgou inconstitucionais trechos da Lei n.º 3.990/2002 do Rio de Janeiro.

No mesmo sentido, a norma em questão permitia ao Estado se intrometer em questões que dizem respeito unicamente à esfera privada das pessoas, ferindo os princípios da privacidade e da intimidade, tão caros ao ordenamento jurídico brasileiro. Importa dizer que não seria possível assegurar que a guarda do material genético tornaria impossível a troca de bebês, uma vez que poderia haver erro na realização da coleta e/ou do armazenamento dos dados, havendo alternativas mais adequadas e menos custosas para tal, como o uso de pulseirinhas identificadoras nas mães e em seus bebês. Além disso, não se poderia garantir que esse material não seria divulgado ou utilizado para fins diversos ao pretendido.

Por consequência, diante da violação do princípio da autodeterminação, da inadequação e desproporcionalidade da medida, bem como na incompetência do estado para legislar sobre a matéria "proteção de dados pessoais", restou julgada inconstitucional a parte da lei estadual fluminense que versava sobre a obrigatoriedade de coleta de DNA de mães e seus bebês, e fixada a seguinte tese:

É inconstitucional a lei estadual que preveja o arquivamento de materiais genéticos de nascituros e parturientes em unidades de saúde com fim de realizar exame de DNA comparativo em caso de dúvida.


Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em julgamento contemporâneo ao do STF acima mencionado, condenou um hospital público e o município ao pagamento de indenização de R$ 40 mil a um homem que descobriu, aos 40 (quarenta) anos de idade, que foi vítima da troca de bebês na maternidade.

Após passar anos ouvindo comentários acerca de sua semelhança física com pessoas de outra família da comunidade em que residia, o homem decidiu fazer um exame de DNA, o qual confirmou as desconfianças e o parentesco. Na instrução do feito, foi produzida prova documental que atestou a diferença de apenas 03 (três) horas entre os nascimentos dos bebês, bem como os depoimentos das testemunhas ouvidas - que trabalharam na casa de saúde à época dos fatos -, deram conta de que os recém-nascidos foram identificados na sala de banho, após o parto, com a colocação de pulseirinhas com seus dados.

Logo, restou reconhecida a falha/ negligência do hospital que não fiscalizou de forma adequada, segura e eficaz a estadia dos bebês, de modo a garantir que seriam entregues às suas respectivas (e verdadeiras) mães, retirando dos mesmos a possibilidade e o direito de conviver com suas famílias de origem por 40 (quarenta) anos, alterando o rumo de suas vidas de forma definitiva, gerando o dever de reparação por parte dos responsáveis pelo erro.

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ADI 5.545/RJ, relator Ministro Luiz Fux, julgado em 13.4.2023

É inconstitucional — por violar os direitos à intimidade e à privacidade (CF/1988, art. 5º, X), bem como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, na dimensão da proibição do excesso — norma estadual que determina a hospitais, casas de saúde e maternidades a coleta compulsória de material genético de mães e bebês na sala de parto e o subsequente armazenamento à disposição da Justiça para o fim de evitar a troca de recém-nascidos nas unidades de saúde.

A lei estadual impugnada, a pretexto de proteger o direito à filiação biológica, viola o direito à privacidade de pessoas em estado de extrema vulnerabilidade, uma vez que há coleta e armazenamento de material genético sem prévio consentimento. Nesse contexto, infringe a autonomia da vontade da parturiente ao se valer de instrumento coercitivo desproporcional para a tutela de interesse eminentemente privado do destinatário da norma, além de comprometer a autodeterminação informativa dos titulares desses dados, pois os impede de decidir sobre sua divulgação e utilização.

Os dados genéticos são classificados como sensíveis, de modo que, mesmo que houvesse consentimento da parturiente, o direito à privacidade ainda estaria violado, visto que o texto da lei impugnada é vago em relação ao tratamento dos dados genéticos armazenados, o que constitui severo risco à integridade digital dos indivíduos.

A ausência de previsão quanto à destinação dos dados, bem como aos mecanismos para sistematizar a coleta, a guarda eficaz e a sua posterior exclusão, permite a utilização do material coletado para quaisquer interesses, como a mercantilização e o perfilamento dos dados, o que pode ocasionar uma série de violações a direitos fundamentais, como, por exemplo, a discriminação genética de pessoas com doenças congênitas.

Além disso, há medidas mais efetivas e menos custosas e interventivas na esfera privada dos indivíduos para se evitar a troca de bebês nas unidades de saúde. Exemplos disso são o uso de pulseiras numeradas na mãe e no filho, o uso de grampo umbilical, a identificação da gestante no momento da admissão, em conjunto com a posterior identificação do recém-nascido no momento do nascimento, e a possibilidade da permanência do pai no momento do nascimento do filho. De qualquer forma, o mais adequado é que o material genético seja coletado a partir do instante em que ocorrer a dúvida sobre possível troca.

Com base nesses entendimentos, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade dos arts. 1º, parte final, e 2º, III, ambos da Lei 3.990/2002 do Estado do Rio de Janeiro (1).



sexta-feira, 5 de maio de 2023

Concessão Imediata de Medidas Protetivas de Urgência

Visando amparar a mulher em situação de risco de violência no âmbito das relações domésticas, familiares e íntimas de afeto, foi recentemente sancionada a Lei n.º 14.550/23, a qual traz importantes acréscimos às normas contidas na Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/06). Para tanto, foram inseridos os §§ 4.º a 6.º ao artigo 19 da mencionada norma, os quais contam com a seguinte redação:


Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.

(...)

§ 4º As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.

§ 5º As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.  

§ 6º As medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.    


A ideia central dos mencionados dispositivos é a proteção imediata do direito fundamental constitucional à VIDA da mulher que se encontra em risco - podendo a medida ser deferida unicamente com base na palavra da vítima, e independentemente de prévia lavratura de ocorrência policial e/ou futuro ajuizamento de ação judicial.

Ademais, a medida deverá vigorar enquanto estiver presente o risco à saúde, segurança e integridade física, psicológica, sexual, patrimonial e/ou moral da ofendida, formas de violência contra a mulher previstas no artigo 7.º da norma.

Importa dizer que, conforme jurisprudência mais moderna e compatível com a realidade brasileira, a vulnerabilidade, hipossuficiência e fragilidade da mulher são presumidas nas circunstâncias previstas na Lei Maria da Penha.