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segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Alteração do Regime de Bens no Casamento

Ao dispor sobre o regime de bens entre os cônjuges, o Código Civil assim estabelece:

Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.

§ 1º O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento.

§ 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros. 

Disso, depreendemos que, uma vez escolhido o regime de bens (comunhão parcial, comunhão universal, participação final nos aquestos ou separação de bens), é possível proceder à sua modificação no decorrer da união matrimonial, desde que o pedido seja realizado judicialmente, tenha motivação e não traga prejuízos a terceiros.

Com relação aos efeitos dessa alteração no tempo, tem se entendido que os bens adquiridos e negócios realizados antes de proferida a sentença que autoriza a troca do regime de bens devem permanecer sob os ditames do regime anterior.

Por ocasião do recente julgamento do REsp n.º 1.904.498/SP, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, a 3.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:


RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CASAMENTO. REGIME D BENS. MODIFICAÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. CONTROVÉRSIA ACERCA DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.639, § 2º, DO CÓDIGO CIVIL. EXIGÊNCIA DA APRESENTAÇÃO DE RELAÇÃO DISCRIMINADA DOS BENS DOS CÔNJUGES. INCOMPATIBILIDADE COM A HIPÓTESE ESPECÍFICA DOS AUTOS. AUSÊNCIA DE VERIFICAÇÃO DE INDÍCIOS DE PREJUÍZO AOS CONSORTES OU A TERCEIROS. PRESERVAÇÃO DA INTIMIDADE E DA VIDA PRIVADA.

(...) 

5. De acordo com a jurisprudência consolidada desta Corte Superior, é possível a modificação do regime de bens escolhido pelo casal - autorizada pelo art. 1.639, § 2º, do CC/02 - ainda que o casamento tenha sido celebrado na vigência do Código Civil anterior, como na espécie. Para tanto, estabelece a norma precitada que ambos os cônjuges devem formular pedido motivado, cujas razões devem ter sua procedência apurada em juízo, resguardados os direitos de terceiros.

6. A melhor interpretação que se pode conferir ao § 2º do art. 1.639 do CC é aquela no sentido de não se exigir dos cônjuges justificativas ou provas exageradas, desconectadas da realidade que emerge dos autos, sobretudo diante do fato de a decisão que concede a modificação do regime de bens operar efeitos ex nunc. Precedente.

7. Isso porque, na sociedade conjugal contemporânea, estruturada de acordo com os ditames assentados na Constituição de 1988, devem ser observados - seja por particulares, seja pela coletividade, seja pelo Estado - os limites impostos para garantia da dignidade da pessoa humana, dos quais decorrem a proteção da vida privada e da intimidade, sob o risco de, em situações como a que ora se examina, tolher indevidamente a liberdade dos cônjuges no que concerne à faculdade de escolha da melhor forma de condução da vida em comum.

8. Destarte, no particular, considerando a presunção de boa-fé que beneficia os consortes e a proteção dos direitos de terceiros conferida pelo dispositivo legal em questão, bem como que os recorrentes apresentaram justificativa plausível à pretensão de mudança de regime de bens e acostaram aos autos farta documentação (certidões negativas das Justiças Estadual e Federal, certidões negativas de débitos tributários, certidões negativas da Justiça do Trabalho, certidões negativas de débitos trabalhistas, certidões negativas de protesto e certidões negativas de órgãos de proteção ao crédito), revela-se despicienda a juntada da relação pormenorizada de seus bens.

RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

(REsp 1904498/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/05/2021, DJe 06/05/2021).


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica

Como medida de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, recentemente foi instituído o programa de cooperação Sinal Vermelho, inserido em nosso ordenamento jurídico através da Lei n.º 14.188/2021.

Nos termos do artigo 2.º do referido regramento, a mulher que está sofrendo violência doméstica deve escrever um X - preferencialmente vermelho e na palma da mão - e mostrá-lo pessoalmente em repartições públicas e entidades privadas de todo o País, de modo a viabilizar assistência e segurança à vítima, a partir do momento em que houver sido efetuada a denúncia por meio do código acima mencionado.

Para a promoção e realização deste importante programa de auxílio às mulheres, há de se proceder à integração entre os Poderes Executivo e Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e os órgãos de segurança pública, bem como estabelecer um canal de comunicação  imediata com as empresas e instituições privadas participantes.

No Código Penal, a nova lei inseriu uma qualificadora ao crime de lesão corporal simples (aumento de pena em razão da condição de mulher), bem como criou o tipo penal de violência psicológica (danos emocionais) contra a mulher. Assim:

Lesão corporal

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

(...)

§ 13.º  Se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos).

Violência psicológica contra a mulher

Art. 147-B.  Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.


Importante ressaltar que este crime pode ser cometido por homem ou mulher, contra mulher (incluindo a transgênero) de qualquer idade (desde criança até idosa). Inclusive, em 2021 já tratamos aqui no ::BLoG:: sobre Mulher Trans e Lei Maria da Penha , Feminicídio e a Legítima(?) Defesa(?) da Honra(?) , e nos debruçamos quanto As Várias Faces da Violência Contra a Mulher (clique nos links para ler).


A recentíssima 
Lei n.º 14.188/2021 também alterou a redação do artigo 12-C da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha), a saber: 

Art. 12-C.  Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: (...)

_________________________________________

Mas afinal, o que é violência doméstica?

Lei Maria da Penha: 

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (...)       

Art. 6º A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.

Código Penal:

Art. 121. Matar alguém: (...)

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido: (...)

Feminicídio       

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

§ 2.º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.  


sexta-feira, 13 de agosto de 2021

A Geolocalização como Estratégia de Investigação

A geolocalização (do inglês geofencing) consiste na localização de determinado aparelho eletrônico (smartphone, computador, notebook ou outro aparato com tecnologia compatível) em qualquer lugar do mundo, através da leitura das suas coordenadas geográficas. A tecnologia envolvida para estabelecer um perímetro virtual pode utilizar o sistema de posicionamento global através de satélites na órbita da Terra (GPS), rede WiFi (leitura da distância do aparelho em relação à origem do sinal), identificação de radiofrequência (emissão de ondas de rádio) ou GPS assistido (informações de conexões de dados, como o 3G e 4G).

Essa ferramenta está presente em várias situações do nosso dia-a-dia: no Uber que chamamos, no Waze ou Google Maps que consultamos, no iFood ou Rappi que demandamos. Todos, sem exceção, utilizam do serviço de geolocalização para rastrear o motorista mais próximo para nos transportar; indicar a melhor rota para chegar a determinado local; eleger o restaurante mais habilitado a entregar nosso alimento.

Da mesma forma, podemos compartilhar com amores, familiares e amigos nossa localização atual nos aplicativos de mensagem WhatsApp e Telegram, para que nos acompanhem em tempo real. Há de se mencionar que, alguns anos atrás, o game Pokemón GO fez um sucesso estrondoso no ramo do entretenimento ao oferecer tecnologia de realidade aumentada: os jogadores "capturavam monstrinhos" que estavam nas imediações do local em que se encontravam. 

Em termos de rastreamento, o sistema operacional de alguns smartphones também dispõe do serviço de informar a última localização do aparelho, o que é extremamente útil nos casos de furto ou roubo do celular.

Mas e quando a geolocalização passa a ser utilizada em investigações policiais? É admissível o emprego dessa ferramenta para identificar potenciais suspeitos do cometimento de um crime? Se mostra possível obter e utilizar dados pessoais com o objetivo de saber quem esteve em certo local durante determinado horário?

A resposta para as perguntas acima é SIM: o Judiciário tem aceito o uso do geofencing como estratégia de investigação. Visando elucidar o homicídio da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou ao Google que entregasse ao Ministério Público os dados de um grupo não identificado de pessoas que aleatoriamente transitaram em determinadas coordenadas geográficas do Rio de Janeiro em certo lapso de tempo (janeiro/2017 a fevereiro/2019)

Por dados, leia-se: fornecimento de um conjunto extremamente amplo de dados sigilosos, que não se restringiriam aos dados de identificação do usuário, mas também ao conteúdo de e-mails, backups, fotos e vídeos, bem como históricos de pesquisa, de localização e de navegação.

O Google interpôs recurso em mandado de segurança (RMS 64.941) invocando como tese de defesa a "violação do regime constitucional e legal de privacidade e proteção de dados pessoais; do princípio da legalidade; da exigência de fundamentação específica da ordem que quebra de sigilo telemático; e do princípio da proporcionalidade, em todas as suas vertentes (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito)."

Por ocasião do julgamento, em decisão monocrática o Ministro Relator Rogerio Schietti Cruz  negou provimento à irresignação do mecanismo de buscas na Internet, com base na teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy. 

Nas palavras do Julgador,

"Trazendo essa doutrina para o exame do caso concreto – em que o direito à segurança pública e à preservação e restauração da ordem pública tem algum resvalo no direito ao sigilo de dados –, nota-se a realização da proporcionalidade em suas três diretrizes essenciais. Ela é adequada, na medida em que serve como meio auxiliar na elucidação do delito. É necessária, diante da gravidade e complexidade do caso e da inexistência de outros meios menos gravosos para se alcançar os legítimos fins investigativos. E, por fim, é proporcional em sentido estrito, porque a restrição aos direitos fundamentais que dela redundam não enseja gravame às pessoas afetadas, as quais não terão seu sigilo de dados registrais publicizados, certo, ainda, que, se não constatada sua conexão com o fato investigado, serão tais registros descartados.

Portanto, a ordem judicial para quebra do sigilo dos registros, delimitada por parâmetros de pesquisa em determinada região e por período de tempo, não se mostra medida desproporcional, porquanto não impõe risco desmedido à privacidade e intimidade de todos os usuários possivelmente atingidos. A existência dessa delimitação por parâmetros e por lapso de tempo serve inclusive como limitador do alcance da medida."

Já tratamos aqui no ::BLoG:: sobre a hipótese de conflito entre 02 (dois) direitos fundamentais - Os Direitos Fundamentais – II (clique no link para ler).

A questão posta poderá ser vista sob dois aspectos: o de que a medida é arbitrária e viola a intimidade/ privacidade de indivíduos que não possuem nenhuma conexão com a investigação criminal que originou a decisão; ou de que a medida possui ares de legalidade e constitucionalidade, uma vez que utiliza a tecnologia a favor do descobrimento da verdade, permanecendo os dados dos usuários em sigilo.

O tema é objeto de Recurso Extraordinário interposto pelo Google perante o Supremo Tribunal Federal (STF) - referente ao Caso Marielle - e atualmente aguarda julgamento em sede de repercussão geral - RE 1.301.250. 


quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Condenação PENAL, Indenização CÍVEL

Nos termos do artigo 515 do Código de Processo Civil, a sentença condenatória proferida no juízo CRIMINAL vincula o CÍVEL - desde que transitada em julgado (ou seja, quando o assunto se torna indiscutível, e a decisão irrecorrível). Nestas circunstâncias, o provimento jurisdicional é tido como título executivo judicial. Assim:

Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título:

(...) VI - a sentença penal condenatória transitada em julgado;

Ocorre que, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n.º 1.829.682/SP, de Relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, mesmo sem o trânsito em julgado, a condenação penal pode embasar o direito à indenização cível, quando tiver sido apreciada e reconhecida a existência de um crime e do autor do fato delituoso pelo juízo criminal.

O artigo 935 do Código Civil informa sobre a autonomia das esferas civil e criminal, mas faz uma importante observação:

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

Já o Código Penal determina o quanto segue:

Art. 91 - São efeitos da condenação:

I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime;  

Na situação julgada pelo STJ, uma mãe teve deferido pedido de indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) em razão do homicídio de seu filho - quantia esta que foi estipulada em consonância com as peculiaridades do caso (embora não houvesse dúvidas sobre quem deu causa ao óbito, não se podia afirmar quem iniciou a briga - pois ausentes testemunhas - já que havia um histórico de desentendimentos entre agressor e vítima, e esta tinha comportamento agressivo).

Importante dizer que, quando a sentença penal absolutória fundamentar-se na inexistência do fato ou na negativa de autoria, não se mostra possível levar a discussão à esfera cível, eis que ausente o dever de reparar o dano.

Segue abaixo a ementa do acórdão mencionado:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS. AÇÃO CIVIL EX DELICTO. CONDENAÇÃO NA ESFERA PENAL. HOMICÍDIO. FILHO DA AUTORA. AUTORIA. INCONTROVERSA. REPARAÇÃO. EXAME DAS CIRCUNSTÂNCIAS.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).

2. Cinge-se a controvérsia a discutir se o reconhecimento da existência de um crime e do seu autor na esfera penal ensejam o dever de indenizar na esfera cível.

3. O artigo 935 do Código Civil adotou o sistema da independência entre as esferas cível e criminal, sendo possível a propositura de suas ações de forma separada. Tal independência é relativa, pois uma vez reconhecida a existência do fato e da autoria no juízo criminal, estas questões não poderão mais ser analisadas pelo juízo cível.

4. A partir da doutrina e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema, é possível concluir que a) em caso de sentença condenatória com trânsito em julgado, há incontornável dever de indenizar, e b) em caso de sentença absolutória em virtude do reconhecimento de inexistência do fato, da negativa de autoria, não haverá dever de indenizar.

5. Não havendo sentença condenatória com trânsito em julgado, deve-se avaliar os elementos de prova para aferir a responsabilidade do réu pela reparação do dano.

6. No caso, ainda que ausente a condenação criminal definitiva, não se pode negar a existência incontroversa do dano sofrido pela autora com a morte de seu filho e a autoria do crime que gerou esse dano. A acentuada reprovabilidade da conduta do réu, ainda que a vítima apresentasse comportamento agressivo e que tenha havido "luta corporal" entre vítima e o réu, não afasta o dever do causador do dano de indenizar.

7. Considerando as circunstâncias fáticas do caso, arbitra-se o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a título de indenização por danos morais.

8. Recurso especial conhecido e provido.