Tema bastante interessante relacionado à psicologia jurídica diz respeito à autópsia psicológica - avaliação retrospectiva dos momentos que antecederam a morte de uma pessoa, quando as circunstâncias do crime contra a vida não foram elucidadas.
Nesses casos, é realizada uma investigação para averiguar as possíveis causas do óbito de natureza não esclarecida, em que se coletam dados sobre as aspectos subjetivos da vítima (sentimentos, personalidade, comportamento, estilo de vida, pensamentos, trabalho, conhecimento), fatores psicossociais, dinâmica familiar e social, relacionamentos afetivos (amorosos e de amizade), entre outros.
É na análise imparcial desses dados e detalhes que se faz possível a reconstrução do perfil e compreensão do estado mental do indivíduo antes de sua morte até então indeterminada - que pode ter se dado de forma natural, acidental, suicídio (auto-inflingida) ou homicídio (crime), de modo a auxiliar os médicos legistas.
Assim, são analisados documentos relativos à pessoa falecida que possam conter informações relevantes, como telefone celular (mensagens escritas, fotos, vídeos e áudios enviados), computador, diários, bilhetes, prontuários médicos; além disso, são colhidos depoimentos de cônjuge/ companheiro(a)/ namorado(a), familiares, parentes, amigos, colegas de trabalho, funcionários, médico(s), que conheciam e conviviam proximamente ao indivíduo no período que antecedeu o passamento.
A autópsia psicológica é meio de prova não prevista expressamente no Código de Processo Penal (CPP), sendo admitida como prova atípica por analogia ao Código de Processo Civil (CPC), em razão do princípio da busca pela verdade real. Assim:
CPP - Art. 3.º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.
CPC - Art. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Importa dizer que a autópsia psicológica ainda é pouco utilizada no Brasil e esse meio de prova ainda não foi padronizado pela comunidade científica, sendo importante fixar critérios para a sua realização de modo a que seja considerada válida e fidedigna, diante da subjetividade inerente a esse instrumento de avaliação.
Logo, em sendo apresentado o laudo pericial perante o Tribunal do Júri - que julga os crimes contra a vida -, caberá aos jurados analisar as suas conclusões de forma criteriosa e cautelosa, sempre em comparação com o restante das provas apresentadas, a fim de verificar se há sintonia entre as mesmas.
Segue recente julgado do Superior Tribunal de Justiça acerca da validade da autópsia psicológica, decisão esta proferida em processo crime onde se tentou, através da impetração de habeas corpus, o afastamento do referido meio de prova. Vejamos:
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. PRONÚNCIA FUNDADA EM ELEMENTOS JUDICIALIZADOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA CAUSA MORTIS DEVERÁ SER SOLUCIONADA PELO CONSELHO DE SENTENÇA. AUTÓPSIA PSICOLÓGICA. PROVA ATÍPICA. FALIBILIDADE DE PROVAS CIENTÍFICAS. CONTROLE DE ADMISSIBILIDADE. VIÉS SUBJETIVO. COTEJO COM DEMAIS PROVAS ACOSTADAS AOS AUTOS. ORDEM DENEGADA.
1. A decisão de pronúncia funciona como um filtro pelo qual apenas são submetidas as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo Conselho de Sentença.
2. Exige-se, em termos de standard probatório, a existência de lastro probatório judicializado, produzido com observância do contraditório e da ampla defesa, na presença das partes e do juiz.
3. Não cabe às instâncias ordinárias, tampouco a esta Corte Superior, valorar as provas dos autos e decidir pela tese prevalente, sob pena de violação da competência constitucional conferida ao Conselho de Sentença. É adequado, tão somente, averiguar se a pronúncia encontra respaldo no caderno probatório, o que ficou demonstrado no caso em exame.
4. O laudo pericial impugnado neste writ foi elaborado em fase inquisitorial. Nesse contexto, o simples pedido de cooperação da Delegada-chefe ao Instituto Médic o Legal, que integra a estrutura da própria Polícia Civil do Distrito Federal, não é capaz de macular, por si só, a lisura da expert, que foi convocada para atuar dentro da sua área de conhecimento técnico. Ademais, o laudo pericial foi subscrito por outras duas pessoas, que não tiveram sua parcialidade impugnada.
5. É uníssona a compreensão de que a busca pela verdade no processo penal encontra limitação nas regras de admissão, de produção e de valoração do material probatório, o qual servirá de suporte ao convencimento do julgador; afinal, os fins colimados pelo processo são tão importantes quanto os meios que se utilizam para alcançar seus resultados.
6. Não vigora no campo penal um sistema rígido de taxatividade dos meios de prova, sendo admitida a produção de provas não disciplinadas em lei, desde que obedecidas determinadas restrições.
A análise sobre a validade da prova atípica perpassa, pois, pelo campo epistemológico.
7. É necessário que se estabeleçam critérios de verificabilidade das provas científicas, que não são infalíveis, com o intuito de se evitar o cometimento de injustiças epistêmicas.
8. A "autópsia psicológica", raras vezes utilizada na praxis forense brasileira, consiste em exame retrospectivo que busca compreender os aspectos psicológicos envolvidos em mortes não esclarecidas.
Trata-se de meio de prova ainda não padronizado pela comunidade científica e erigido, inegavelmente, em aspectos subjetivos.
9. Na espécie, o laudo foi subscrito por um agente policial e dois peritos médicos legistas e se baseou em entrevistas acostadas aos autos, permitindo às partes a sindicabilidade e o confronto com a fonte originária de prova. Ademais, os assistentes técnicos puderam contestar sua cientificidade no curso do processo e uma das peritas subscritoras será inquirida em plenário.
10. Assim, incumbirá aos jurados, no exercício da sua soberana função constitucional, realizar o devido cotejo do laudo com o acervo probatório acostado aos autos para decidir acerca da existência de autoria e materialidade delitivas.
11. Ordem denegada.
(HC n. 740.431/DF, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 13/9/2022, DJe de 19/9/2022.) Grifos nossos
Por fim, cumpre referir que também no direito processual civil é plenamente viável a utilização de tal meio de prova atípico, a exemplo das complexas situações envolvendo seguro de vida contratado pouco antes do óbito (em que as seguradoras recusam o pagamento da cobertura aos beneficiários sob a alegação de tratar-se de suicídio premeditado) e da assinatura de documentos importantes (como uma procuração ou testamento) ou movimentações financeiras vultosas por pessoas acometidas de doenças neurodegenerativas graves, estando ou não interditadas (em que se mostra difícil saber quando a enfermidade começou a se manifestar e interferir na capacidade civil do indivíduo). Como apurar, de forma pretérita, o real desejo/ vontade da pessoa no momento da realização dos atos jurídicos?
No tocante ao laudo pericial, seguem as disposições da lei processual civil:
Art. 473. O laudo pericial deverá conter:
I - a exposição do objeto da perícia;
II - a análise técnica ou científica realizada pelo perito;
III - a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;
IV - resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.
§ 1.º No laudo, o perito deve apresentar sua fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, indicando como alcançou suas conclusões.
§ 2.º É vedado ao perito ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do objeto da perícia.
§ 3.º Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia. (grifo nosso)
Ainda no CPC encontramos disposições acerca da perícia complexa, que envolve mais de uma área de saber, como é o caso daquela que concilia os conhecimentos de um Psicólogo e de um Médico Psiquiatra (para aferir a saúde mental da pessoa):
Art. 475. Tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais de um perito, e a parte, indicar mais de um assistente técnico.
Por certo que a reconstrução da biografia de um ser humano se trata de tarefa de difícil realização, por isso a importância e necessidade de um trabalho sério, com bases científicas sólidas e concatenado com outros meios de prova colhidos.