Por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n.º 811, o Supremo Tribunal Federal, por 9 votos a 2, entendeu que o direito à liberdade de culto pode ser restringido em prol dos direitos à vida e à saúde.
Lembrando que já tratamos aqui no BLoG acerca da resolução da problemática que surge sempre que dois ou mais direitos fundamentais entram em confronto - Os Direitos Fundamentais e Os Direitos Fundamentais – II (clique no link para ler).
Assim, no entendimento majoritário da Suprema Corte, a liberdade de professar religião pode ser temporariamente restringida em tempos de pandemia, visando assegurar bens maiores - vida e saúde. Isso porque as atividades religiosas presenciais coletivas podem configurar meio para circulação e transmissão do coronavírus.
Para melhor compreensão do tema, transcrevemos importantes trechos do julgado:
A Constituição Federal de 1988 dispõe ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, VI), ao mesmo tempo em que proíbe a União, Estados e Municípios de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, I, CF).
No presente caso, questiona-se se o conteúdo normativo dos preceitos fundamentais teria sido violado, ou desproporcionalmente restringido, pelas limitações à realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo durante o período de agravamento da pandemia da COVID-19 no Estado de São Paulo. (...)
Nesse aspecto, a doutrina estrangeira recorrentemente parte de uma interpretação do supracitado art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos para assentar uma sub-classificação das dimensões do direito fundamental à liberdade religiosa. Reconhece-se a existência de uma dimensão interna (forum internum) e de uma dimensão externa (forum externum) deste direito. O “forum internum” consiste na liberdade espiritual íntima de formar a sua crença, a sua ideologia ou a sua consciência, enquanto que o “forum externum” diz respeito mais propriamente à liberdade de confissão e à liberdade de culto. (...)
Embora advinda da interpretação das fontes supranacionais dos Direitos Humanos, esse reconhecimento da dúplice dimensão do direito à liberdade religiosa é albergado no texto da Constituição Federal de 1988. Tanto as liberdades de consciência quanto as de religião e de exercício de culto foram reconhecidas pelo constituinte. Conquanto uma e outra se aproximem em vários aspectos, não se confundem entre si.
Sob a dimensão interna, a liberdade de consciência está prevista no art. 5º, VI, da Constituição, não se esgota no aspecto religioso, mas nele encontra expressão concreta de marcado relevo. Nesse sentido é referida também no inciso VIII do art. 5º da CF.
Por outro lado, na dimensão externa, o texto constitucional brasileiro alberga a liberdade de crença, de aderir a alguma religião, e a liberdade do exercício do culto respectivo. As liturgias e os locais de culto são protegidos nos termos da lei. A lei deve proteger os templos e não deve interferir nas liturgias, a não ser que assim o imponha algum valor constitucional concorrente de maior peso na hipótese considerada. Os logradouros públicos não são, por natureza, locais de culto, mas a manifestação religiosa pode ocorrer ali, protegida pelo direito de reunião, com as limitações respectivas.
Corroborando a tese de que há uma possibilidade de restrição relativa do direito à liberdade religiosa em sua dimensão externa (forum externum), é digno de destaque que o constituinte de 1988, ao prescrever o direito de liberdade religiosa, estabeleceu inequívoca reserva de lei ao exercício dos cultos religiosos.
Nesse sentido, o inciso VI do art. 5º assegura “o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei”. Essa reserva legal, por si só, afasta qualquer compreensão no sentido de afirmar que a liberdade de realização de cultos coletivos seria absoluta. Como já tive a oportunidade de esclarecer no âmbito doutrinário, a lei deve proteger os templos e não deve interferir nas liturgias, “a não ser que assim o imponha algum valor constitucional concorrente de maior peso na hipótese considerada”.
Pelo que se depreende do julgado, o direito das pessoas terem suas crenças segue absoluto, eis que não pode ser restringido pelo Estado; contudo, a sua manifestação pode ser relativizada e temporariamente limitada em caso de pandemia - o que não fere o núcleo essencial da liberdade religiosa -, para proteger a vida e a saúde não apenas dos fieis, mas de toda a população.
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