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quarta-feira, 10 de março de 2021

Feminicídio e a Legítima(?) Defesa(?) da Honra(?)

2003. Ano em que uma jovem estudante de Ciências Jurídicas e Sociais, apaixonada pelas aulas de Direito Penal, começava a escrever seu trabalho de conclusão de curso na Universidade do Vale do Rio do Sinos - Unisinos. O tema? "Uxoricídio: uma visão psicológico-jurídica do criminoso passional." 

À época, a formanda, além da parte teórica e digressão histórica acerca do delito de homicídio, do julgamento perante o Tribunal do Júri e  dos aspectos psicológicos e culturais que circundam o tema,  mencionou em seu TCC três casos famosos e paradigmáticos de crimes cometidos no Brasil por homens contra suas companheiras, usando a mencionada tese como escusa para o bárbaro ato de retirar a vida de alguém que diziam amar.

Recentemente, o tema foi a julgamento perante a Suprema Corte brasileira - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 779 -, oportunidade em que o Ministro Dias Toffoli, de forma irretocável e em sede de liminar, vetou o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, posto que inconstitucional, uma vez que contraria frontalmente os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Nos termos da legislação aplicável à excludente de ilicitude:  


Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: 

(...) II - em legítima defesa; 

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.   


Ora, nos parece evidente que, da simples leitura do artigo 25 do Código Penal, se extraia a completa inadequação da tese de legítima defesa para "defender a honra". Nas palavras do Ministro Toffoli: 


"Por agressão injusta, entende-se aquela que ameaça ou lesa um bem jurídico. A atualidade ou a iminência da agressão são requisitos essenciais para a caracterização da excludente de ilicitude, pois ela deve ser aferível no momento da autodefesa, não podendo ser uma situação passada ou futura. Por sua vez, ao dispor sobre o uso moderado dos meios necessários, o Código Penal está a estabelecer a proibição do excesso, no sentido de que a defesa deve consistir no uso de meios proporcionais à agressão, ou seja, suficientes para repeli-la. (...)

Diante dessa breve exposição do instituto, salta ao olhos que a “legítima defesa da honra”, na realidade, não configura legítima defesa. Tenho que a traição se encontra inserida no contexto das relações amorosas, sendo que tanto homens quanto mulheres estão suscetíveis de praticá-la ou de sofrê-la. Seu desvalor reside no âmbito ético e moral, não havendo que se falar em um direito subjetivo de contra ela agir com violência.

Aliás, foi imbuído desse espírito e para evitar que a autoridade judiciária absolvesse o agente que agiu movido por ciúme ou outras paixões e emoções que o legislador ordinário inseriu no atual Código Penal a regra do art. 28, segundo a qual:

'Art. 28. Não excluem a imputabilidade penal:

I - a emoção ou a paixão.'"


E ainda refere:


"De outra banda, ressalto que é dever do Estado criar mecanismos para coibir o feminicídio e a violência doméstica, a teor do que dispõe o art. 226, § 8º, da CF, segundo o qual o “Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (grifo nosso). Decorre da norma constitucional em tela não somente a obrigação do Estado de adotar condutas positivas, mas também o dever de não ser conivente e de não estimular a violência doméstica e o feminicídio." 


A jovem formanda de 2003 (que tirou a nota 9,5 em seu TCC, recomendado para publicação) , hoje advogada e Autora deste BLoG, em seus estudos sobre o tema, concluiu que o uxoricídio tem como motivos determinantes o ciúme, a vingança e o sentimento de posse sobre a mulher, misturados ao ódio e ao egoísmo. Por esta razão, o motivo torpe é a qualificadora do homicídio que mais se adequa ao caso, para fins de agravar a pena do agressor, tornando a conduta mais severamente punida. Assim:


Art. 121. Matar alguém:
(...) 

Homicídio qualificado 

§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

Feminicídio       (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)

VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
(...)
§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:     
I - violência doméstica e familiar;     
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.  


Nelson Hungria, um dos maiores expoentes do Direito Penal brasileiro, de forma magistral escreveu sobre o tema em seu "Comentários ao Código Penal, Volume 5", datado de 1958: 

"O amor que mata, o amor- Nêmesis, o amor- açougueiro é uma contrafação monstruosa do amor: é o animalesco egoísmo da posse carnal, é o despeito do macho preterido, é a vaidade malferida da fêmea abandonada. É o furor do instinto sexual da Besta. O passionalismo que vai até o assassínio muito pouco tem a ver com o amor. Quando não seja a expressão de um desequilíbrio psíquico, é um chocante espetáculo de perversidade.

(...)

Os matadores chamados passionais, para os quais se invoca o amor como escusa, não passam, na sua grande maioria, de autênticos celerados: não os inspira o amor, mas o ódio inexorável dos maus. Impiedosos, covardes, sedentos de sangue, porejando vingança, mas só agindo diante da impossibilidade de resistência das vítimas, estarrecem pela bruteza do crime, apavoram pela estupidez do gesto homicida. Para eles não basta a punhalada certeira em pleno coração da vítima indefesa: na volúpia da destruição e da sangueira, multiplicam os golpes até que a lâmine sobre si mesma se encurve. Não basta que, ao primeiro tiro, a vítima tombe numa poça de sangue: despejam sobre o cadáver até a última bala do revólver. Dir-se-ia que eles desejam que a vítima tivesse não só uma, mas cem vidas, para que pudessem dar-lhe cem mortes!"

Em tempos de Lei Maria da Penha , punição para quem pratica o Stalking  e o Revenge Pornuma decisão como a ora mencionada, que afasta a tese da legítima defesa da honra a quem pratica o Feminicídio , se trata de verdadeira conquista para as mulheres e para quem luta pela observância e respeito a seus direitos e garantias.

Leia a Decisão do Relator na MEDIDA CAUTELAR NA ADPF 779

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