Conforme julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), recentemente confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, paciente que participou de estudo feito por laboratório farmacêutico deve continuar recebendo a medicação mesmo após finalizada a pesquisa.
No caso concreto, uma paciente portadora de doença genética rara vinha recebendo medicação experimental para tratamento e, quando as pesquisas foram encerradas, o remédio não mais lhe foi alcançado, razão pela qual recorreu ao Judiciário requerendo a manutenção do fornecimento do fármaco enquanto fosse necessário.
Importante dizer que, no termo de consentimento livre e esclarecido firmado entre os participantes do estudo e o laboratório, há cláusula expressa no sentido de que este se compromete a continuar fornecendo o medicamento após a finalização do projeto.
Desse modo, o laboratório foi condenado com base no artigo 422 do Código Civil, o qual dispõe que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Mais do que o dever contratual, existe o dever ético e moral da farmacêutica.
A Resolução n.º 196/96 do Conselho Nacional de Saúde assim determina:
III - ASPECTOS ÉTICOS DA PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS
As pesquisas envolvendo seres humanos devem atender às exigências éticas e científicas fundamentais.
III.1 - A eticidade da pesquisa implica em:
a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência);
d) relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade). (...)
III.3 - A pesquisa em qualquer área do conhecimento, envolvendo seres humanos deverá observar as seguintes exigências: (...)
p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa;
q)assegurar aos sujeitos da pesquisa as condições de acompanhamento, tratamento ou de orientação, conforme o caso, nas pesquisas de rastreamento; demonstrar a preponderância de benefícios sobre riscos e custos;
Abaixo, segue a ementa de acórdão do julgado:
APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE REGRESSO. PACIENTE SUBMETIDO A TRATAMENTO EXPERIMENTAL. RESPONSABILIDADE DO LABORATÓRIO PELO FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO ALDURAZYME®. RESOLUÇÕES DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. DEVER CONTRATUAL. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. Ilegitimidade passiva ad causam. Hipótese em que a Genzyme do Brasil LTDA, atualmente, SANOFI-AVENTIS FARMACEUTICA LTDA, é uma subsidiária brasileira da “Genzyme Corporation”, razão pela qual de acordo com o art. 75, inciso, VIII, §3º, do CPC, “serão representados em juízo, ativa e passivamente a pessoa jurídica, por quem os respectivos atos constitutivos designarem”. Aplicável à situação dos autos, outrossim, a Teoria da Aparência, a qual confere à parte ré sua legitimidade para figurar no polo passivo da presente ação. Ressarcimento dos valores. O cabimento da presente ação está evidenciado no acórdão n. 70056149131 e no Agravo Regimental em Recurso Especial n. 621.099, os quais foram assentes ao afirmar que ”em que pese a relevância da questão, inviável sua apreciação nesta demanda, devendo o Agravante manejar ação própria com tal finalidade”. De acordo com as Resoluções 196 e 251 do Conselho Nacional de Saúde, as pesquisas envolvendo seres humanos deverão observar determinados preceitos éticos a fim de proteger a integridade física e psíquica, a saúde, a dignidade, a liberdade, o bem-estar, a vida e os direitos envolvidos em experiências científicas. No caso dos autos, o laboratório firmou Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com os pais da criança submetida à pesquisa para a aprovação do medicamento Aldurazyme®, sendo que uma das cláusulas contratuais era expressa no sentido de que “Após estas 26 semanas, será oferecida a continuação do tratamento com Aldurazyme® aos pacientes que concluírem o estudo”. Da análise do contrato assinado, denota-se que o laboratório assegurou a continuidade do tratamento, razão pela qual há flagrante ofensa ao princípio da boa-fé. Com efeito, tenho que é inadmissível, sendo repudiado pelo ordenamento jurídico, o comportamento contraditório da parte ré, consubstanciado, em afronta à boa-fé, na circunstância de um sujeito de direito buscar favorecer-se, em processo judicial, assumindo conduta que contradiz outra que a precede no tempo e assim constitui um proceder injusto e inaceitável. Não há como negar que a conduta anterior do laboratório gerou, objetivamente, confiança em quem recebeu reflexos dela. Portanto, deve-se, em nome da lealdade, da confiança, do equilíbrio contratual, da razoabilidade e da proporcionalidade, rechaçar tal comportamento gravemente antiético. Destaca-se, ainda, que a responsabilidade do Estado prevista na Constituição Federal e reafirmada nos temas 106 do STJ e 793 do STF, não se confunde com a reponsabilidade contratual, tampouco com as disposições previstas nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde, estas aplicáveis ao caso dos autos. Destarte, imperiosa a reforma da sentença para afastar o reconhecimento da solidariedade do Estado do Rio Grande do Sul e da empresa ré, pois o dever contratual, ético, moral, ínsitos no princípio da boa-fé, além das Resoluções do Conselho Nacional de Saúde, indicam sobremaneira que era dever do laboratório fornecer o tratamento à paciente que foi submetida ao estudo experimental do medicamento, até que fosse necessário. APELO DA PARTE RÉ DESPROVIDO. APELO DA PARTE AUTORA PROVIDO.(Apelação Cível, Nº 70082322611, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lúcia de Fátima Cerveira, Julgado em: 25-09-2019). (Grifos nossos).
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