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sexta-feira, 27 de março de 2020

Obrigação Contratual, Pandemia e Responsabilidade Civil

Assunto mais comentado nas últimas semanas, a pandemia mundial do novo coronavírus tem repercutido nas mais diversas esferas (política, socioeconômica, científica, cultural), e já está alterando de forma substancial alguns cenários internacionais. No âmbito jurídico, não poderia ser diferente. Neste artigo, falaremos um pouco sobre o impacto do COVID-19 no Direito Civil brasileiro.

Para fins de melhor compreensão dos conceitos aqui envolvidos, inicialmente há de se fazer uma oportuna distinção entre obrigação contratual e responsabilidade civil. 

Ao dispor sobre o tema, o Código Civil de 2002 (CC/02), em seu artigo 389, estabelece quenão cumprida a obrigação (originária), responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado (responsabilidade civil).

Nas palavras de Sergio Cavalieri Filho, "obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, consequente à violação do primeiro. Se alguém se compromete a prestar serviços profissionais a outrem, assume uma obrigação, um dever jurídico originário. Se não cumprir a obrigação (deixar de prestar os serviços), violará o dever jurídico originário, surgindo daí a responsabilidade, o dever de compor o prejuízo causado pelo não cumprimento da obrigação."

Temos então que, para haver responsabilidade civil, necessariamente deverá existir uma obrigação contratual preexistente descumprida.

A legislação civil pátria prevê 03 (três) modalidades de obrigações = dar, fazer e não fazer. Estas se encontram reguladas a partir do artigo 233 do CC/02, onde estão previstos desdobramentos diferenciados para os casos em que existe ou inexiste culpa do devedor pelo inadimplemento.

Conforme a Teoria Geral, os princípios clássicos dos Contratos são: 1) da autonomia da vontade (liberdade contratual das partes, de acordo com os seus interesses privados), 2) da obrigatoriedade/ intangibilidade (pacta sunt servanda = o contrato faz lei entre as partes, e deverá ser cumprido) e 3) da relatividade (sempre que sobrevierem fatos que modifiquem a situação de um dos contratantes, poderão as partes revisar ou alterar um contrato firmado, de modo a evitar injustiças). 

Com o advento do Código Civil de 2002, o foco deixou de ser a segurança jurídica ("princípio dos princípios" do CC/16, que privilegiava o patrimônio) e passou a ser a dignidade humana (promoveu a pessoa ao primeiro lugar, em estrita consonância com o disposto na Constituição Federal de 1988).

Como resultado dessa nova visão, surgiram os princípios contratuais da:

  • Função Social - (art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato), e da 
  • Boa-fé Objetiva - (art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé).

Enquanto a função social do contrato tem por objetivo aproximar as partes e harmonizar seus interesses, de modo a assegurar e/ou retomar a igualdade material entre os contratantes, a boa-fé objetiva exige que as partes atuem com integridade, bem como observem os deveres anexos (laterais) da probidade, zelo, transparência, honestidade, informação, confiança, ética, lealdade, segurança, entre outros.

Devido aos últimos acontecimentos, em especial a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que as pessoas (que não precisem sair) permaneçam em suas casas em verdadeiro isolamento social, visando evitar a propagação do coronavírus - o que gerou uma série de normatizações estaduais e municipais declarando estado de calamidade pública e determinando o fechamento de indústria, comércio e serviços não essenciais por tempo indeterminado, outras ainda proibindo/ limitando a circulação de pessoas nas ruas (como a de idosos, em Porto Alegre) -, o fato é que muitos empreendimentos atualmente encontram-se impedidos de abrirem suas portas e produzirem/ comercializarem seus produtos e serviços.

Nessa situação diferenciada, como fica o cumprimento das obrigações e contratos anteriormente firmados?

O Código Civil trata das situações de caso fortuito e força maior, a saber:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Art. 607. O contrato de prestação de serviço acaba com a morte de qualquer das partes. Termina, ainda, pelo escoamento do prazo, pela conclusão da obra, pela rescisão do contrato mediante aviso prévio, por inadimplemento de qualquer das partes ou pela impossibilidade da continuação do contrato, motivada por força maior.

Em um primeiro momento, há de se verificar se trata-se de caso de revisão contratual - impossibilidade temporária, em que é possível estabelecer prazos de suspensão, promover readequações, equacionar as prestações -, ou se é hipótese de resolução contratual - impossibilidade absoluta de manter a avença, com o retorno das partes ao status quo ante - ou seja, os valores eventualmente já adimplidos (prestações iniciais) retornam ao pagador. Diverso é o caso, por exemplo, da locação, que se trata de prestação de trato sucessivo, e a utilidade já foi implementada. 

Temos assim as seguintes teorias que, a depender da situação, poderão ser invocadas:

1) Teoria da Imprevisão = 

Relação de Direito Civil (CC/02)
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.


2) Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio = CDC

Relação de Direito do Consumidor (CDC)
Art. 6.º São direitos básicos do consumidor:
(...)
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;


3) Teoria da Onerosidade Excessiva = 

Relação de Direito Civil (CC/02)
Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.


4) Da Exceção de Contrato não Cumprido =

Relação de Direito Civil (CC/02)
Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.

O princípio da boa-fé, dada a sua grande importância, foi alçado ao status de artigo de lei, e deve ser utilizado para interpretar, integrar ou corrigir cláusulas contratuais.

 Neste momento, assim como o princípio da função social, mostram-se fundamentais para se buscar a melhor solução para as partes envolvidas. Há de se garantir o equilíbrio contratual - o que também envolve as perdas, manter o diálogo franco e aberto visando a compreensão/ cooperação, restaurar a reciprocidade através da negociação, devendo as informações acerca da real situação das partes contratantes serem comunicadas com transparência e verdade.

O momento extraordinário e anômalo que estamos vivendo demanda serenidade e cautela e, mais do que nunca, cabe a nós, advogados, incentivar a utilização dos métodos alternativos de resolução de conflitos (como a conciliação e a mediação), regidos pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, visando a breve composição dos litígios que possam advir, de forma também a não sobrecarregar ainda mais o Poder Judiciário.
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CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 1o.ed.  São Paulo: Atlas, 2012. p. 2/3.



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