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quinta-feira, 8 de julho de 2021

A Pandemia e o Princípio da Insignificância

O princípio da insignificância, também conhecido como de bagatela, tem origem no Direito Penal e, nas palavras do professor Cezar Bitencourt, pode ser assim definido:

"Com efeito, a insignificância ou irrelevância não é sinônimo de pequenos crimes ou pequenas infrações, mas se refere à gravidade, extensão ou intensidade da ofensa produzida a determinado bem jurídico penalmente tutelado, independentemente de sua importância. A insignificância reside na desproporcional lesão ou ofensa produzida ao bem jurídico tutelado, com a gravidade da sanção cominada. A insignificância situa-se no abismo que separa o grau da ofensa produzida (mínima) ao bem jurídico tutelado e a gravidade da sanção que lhe é cominada. É nesse paralelismo — mínima ofensa e desproporcional punição — que deve ser valorada a necessidade, justiça e proporcionalidade de eventual punição do autor do fato." (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral 1. V.1. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 2018).

Desse modo, em síntese, para que se possa invocar o mencionado princípio, alguns requisitos deverão estar presentes, a saber: 

* mínima ofensividade da conduta do agente;

* não representar periculosidade à ordem social;

* baixo grau de reprovabilidade do comportamento adotado;

* a lesão jurídica causada não ser expressiva.

Nestes tempos de pandemia do Coronavírus, um dos exemplos mais claros da aplicação deste princípio diz respeito ao furto de alimentos para consumo próprio.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, cuja competência (nos termos do artigo 105 da Constituição Federal de 1988) é de julgar recursos relativos a temas infraconstitucionais relevantes em âmbito nacional, durante uma de suas sessões por videoconferência aplicou o princípio da bagatela por ocasião do julgamento de habeas corpus impetrado por um réu condenado pelas instâncias inferiores pelo furto de 02 (dois) steaks (filés de frango empanados), na monta de R$ 4,00 (quatro reais).

O relator do recurso, que poderia tê-lo julgado monocraticamente (sozinho), entendeu por levar o tema ao colegiado, de modo a chamar a atenção para o assunto. Conforme a jurisprudência do STJ, o princípio da insignificância se aplica aos casos em que o valor do bem furtado não ultrapassa 10% (dez por cento) do salário mínimo vigente à época do fato. Na situação analisada, equivalia a menos de 0,5% (meio por cento).

Importante que se diga que o princípio da insignificância deve ser aplicado somente em situações excepcionais, em que o valor do(s) produto(s) substraído(s) é baixo, o crime tenha sido cometido sem violência ou grave ameaça (conforme requisitos acima mencionados), o autor do fato exiba uma condição de primariedade e tenha bons antecedentes, e/ou até mesmo esteja em situação de miséria - quando poderá ainda estar caracterizado o furto famélico (aquele praticado para saciar a fome, em um momento de necessidade urgente e relevante, visando assegurar a manutenção da própria vida e/ou de sua família).

Conforme entendimento do STF, a aplicação do princípio da bagatela é VEDADA nos casos de violência doméstica, tentativa de suborno e no contexto de tráfico. 

Para além da análise ético-moral da conduta praticada pelo indivíduo (noção de certo x errado), bem como do alto custo envolvido para movimentar o Judiciário ao se levar o tema a julgamento pela Corte Superior (quando as instâncias inferiores deveriam ter aplicado o entendimento pacífico do STJ, o qual visa evitar que os processos desnecessariamente cheguem até lá, especialmente quando configurada ausência de prioridade e relevância do assunto), importante destacar o momento que o país vive desde que o Covid-19 chegou em terras brasileiras, em fevereiro de 2020.

O número de pessoas que passou a viver em níveis abaixo da linha de pobreza extrema aumentou exponencialmente. Em que pese a instituição do benefício financeiro Auxílio Emergencial (clique para ler), inicialmente no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais), e que depois de diversas prorrogações, neste momento teve seu valor médio estabelecido em R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) - com exceção para as mulheres que criam seus filhos sozinhas e recebem R$ 375,00 (trezentos e setenta e cinco reais) e os indivíduos que moram sozinhos, os quais recebem R$ 150,00 (cento e cinquenta reais), estas quantias são evidentemente irrisórias para suprir as demandas básicas do ser humano, o mínimo existencial para que se possa sobreviver.

Ao dispor sobre os direitos sociais, nossa Carta Magna assim determina: 

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.          

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...)

IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (grifo nosso)

Salário mínimo - janeiro/2021 = R$ 1.100,00

Benefício assistencial - julho/2021 = R$ 250,00

Fica a reflexão.

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RECURSO EM HABEAS CORPUS. FURTO. TRANCAMENTO DO PROCESSO. INSIGNIFICÂNCIA. VALOR ÍNFIMO. CONCEITO INTEGRAL DE CRIME. PUNIBILIDADE CONCRETA. CONTEÚDO MATERIAL. BEM JURÍDICO TUTELADO. GRAU DE OFENSA. VALOR ÍNFIMO DA SUBTRAÇÃO. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. 

1. Para que o fato seja considerado criminalmente relevante, não basta a mera subsunção formal a um tipo penal. Deve ser avaliado o desvalor representado pela conduta humana, bem como a extensão da lesão causada ao bem jurídico tutelado, com o intuito de aferir se há necessidade e merecimento da sanção, à luz dos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade.

2. As hipóteses de aplicação do princípio da insignificância se revelam com mais clareza no exame da punibilidade concreta - possibilidade jurídica de incidência de uma pena -, que atribui conteúdo material e sentido social a um conceito integral de delito como fato típico, ilícito, culpável e punível, em contraste com estrutura tripartite (formal).

3. Por se tratar de categorias de conteúdo absoluto, a tipicidade e a ilicitude não comportam dimensionamento do grau de ofensa ao bem jurídico tutelado compreendido a partir da apreciação dos contornos fáticos e dos condicionamentos sociais em que se inserem o agente e a vítima.

4. O diálogo entre a política criminal e a dogmática na jurisprudência sobre a bagatela é também informado pelos elementos subjacentes ao crime, que se compõem do valor dos bens subtraídos e do comportamento social do acusado nos últimos anos.

5. Na espécie, o réu primário subtraiu de estabelecimento comercial dois steaks de frango, avaliados em R$ 4,00, valor ínfimo que não evidencia lesão ao bem jurídico tutelado e não autoriza a atividade punitiva estatal.

6. Recurso em habeas corpus provido, para determinar o trancamento da ação penal.

(RHC 126.272/MG, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 01/06/2021, DJe 15/06/2021)


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