Líder no ranking das empresas que atuam no segmento de streaming de vídeos, a plataforma online Netflix - que conta com mais de 200 milhões de usuários ao redor do mundo - tem investido fortemente na produção de séries documentais, dentre elas, as que versam acerca de crimes famosos e de grande repercussão. Embora possua caráter eminentemente informativo, eis que um documentário, por excelência, retrata fatos/ acontecimentos reais - os indivíduos apresentados como "vilões" muitas vezes têm buscado, perante o Judiciário, reparação civil por pretensos danos à sua imagem.
Já falamos aqui sobre Os Direitos Fundamentais e a necessária ponderação entre os princípios constitucionais que se encontram em conflito (direito à imagem da pessoa x direito à informação da imprensa) e também sobre o Direito ao Esquecimento x Memória Coletiva (clique nos links para ler). Situação diversa é aquela em que o próprio autor do homicídio não apenas autoriza a veiculação do documentário como também dele participa, apresentando sua versão dos fatos - caso de Elize Matsunaga, cujo assassinato do marido foi mencionado no ::BLoG:: à época dos acontecimentos - Crime Passional .
Ocorre que, em situações como a ora debatida, via de regra não há como se responsabilizar e condenar uma empresa que atua no ramo das comunicações em retirar o filme/ documentário ou episódio de série documental do ar (obrigação de fazer) e pagar uma indenização por danos morais, uma vez que não há intenção de ofensa à honra, mas apenas veicular o que consta no processo penal - logo, independe de autorização do autor do fato.
Nesse sentido são as recentes decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acerca do tema:
Indenizatória – Pretendida condenação das requeridas ao pagamento de indenização por danos morais em virtude da exibição de fotografias do autor, sem autorização, na Série de Investigação Criminal, episódio 1, da 2ª Temporada, intitulada "Bianca Consoli" – Série que visa análise crítica de crimes notórios – Narração de fatos ocorridos e que foram objeto de procedimento criminal, com a condenação do autor - Fatos verdadeiros e que são de interesse público - Inexistência de ofensas à honra do demandante – Sentença mantida - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1110417-33.2019.8.26.0100; Relator (a): A.C.Mathias Coltro; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 20ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/06/2021; Data de Registro: 18/06/2021).
DANO MORAL – Indenizatória – Filmagem e divulgação, pelas rés, de filme sobre crime praticado pelo autor – Possibilidade - Autorização que não se fazia necessária – Autor que adquiriu notoriedade com sua conduta criminosa - Dano moral que não decorreu da produção e/ou exibição cinematográfica, mas, sim, de sua conduta homicida – Película que se ateve aos fatos reais, que chocaram o pais, daí o interesse na filmagem, que, também, tem caráter histórico e educativo – Sentença de improcedência - Recurso desprovido, com observação. (TJSP; Apelação Cível 1108361-27.2019.8.26.0100; Relator (a): Rui Cascaldi; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 37ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/07/2021; Data de Registro: 07/07/2021). GRIFOS NOSSOS.
Inclusive, cabe aqui transcrever importante e elucidativo trecho extraído do acórdão relativo a esta última ementa:
"Com o crime cometido, de repercussão nacional, o autor saiu do anonimato e se tornou pessoa pública. O julgamento foi acompanhado pela imprensa e tudo a seu respeito foi publicado, inclusive suas fotos foram divulgadas. O crime, de ação pública, por sua vez, correu sem imposição de sigilo. Muito tempo depois, o crime é transformado em filme, com referências desabonadoras ao autor, mas, reais. Afinal, a sua conduta criminosa não podia lhe render aplausos, mas, desaprovação. Se a sua honra, ou sua moral, ou mesmo a sua intimidade, foi violada, o foi pela sua conduta criminosa e não pela película que retratou o seu crime, que se ateve à realidade dos fatos, não se afastando, em nenhum momento, do dever de informar. À divulgação de fatos e pessoas notórias, com tal finalidade, não se aplica a Súmula 403, do STJ, ainda que se reconheça haver uma atividade econômica/lucrativa por trás desse tipo de produção cinematográfica. O autor, de seu turno, tendo se tornado pessoa púbica, com a prática de seu crime, passou a ter que tolerar a intromissão maior em sua vida privada, como ocorre com todas as pessoas públicas."
Recentemente, por ocasião do julgamento do AgInt no REsp 1.890.611/SP, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:
"(...) 2. O direito à liberdade de imprensa não é absoluto, devendo sempre ser alicerçado na ética e na boa-fé, sob pena de caracterizar-se abusivo. Não há dúvidas de que a proteção aos direitos da personalidade é assegurada a todos os indivíduos. É certo, no entanto, que a esfera de proteção dos direitos da personalidade de pessoas públicas ou notórias é reduzida. 3. A jurisprudência desta Corte Superior é consolidada no sentido de que a atividade da imprensa deve pautar-se em três pilares, quais sejam: (i) dever de veracidade, (ii) dever de pertinência e (iii) dever geral de cuidado. 4. O STF e o STJ entendem inexistir ato ilícito se os fatos divulgados forem verídicos ou verossímeis, ainda que eivados de opiniões severas, irônicas ou impiedosas, notadamente quando se tratar de figuras públicas que exerçam atividades típicas de estado, gerindo interesses da coletividade, e a notícia e a crítica dizerem respeito a fatos de interesse geral e conexos com a atividade desenvolvida pela pessoa noticiada. Além de verdadeira, a informação deve ser útil; isto é, deve haver interesse público no fato noticiado. Se uma notícia ou reportagem sobre determinada pessoa veicula um dado que, de fato, interessa à coletividade, a balança pende para a liberdade de imprensa. Do contrário, preservam-se os direitos da personalidade (REsp 1.297.660/RS). Somado à veracidade e ao interesse público, a mídia tem o dever de evitar que o conteúdo difundido afronte os direitos da personalidade de outrem. A liberdade de informação não pode ser exercida com o intuito de difamar, injuriar ou caluniar. (...)"
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Enunciado de Súmula n.º 403 do STJ:
Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.
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