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quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Autópsia Psicológica como Prova Judicial

Tema bastante interessante relacionado à psicologia jurídica diz respeito à autópsia psicológica - avaliação retrospectiva dos momentos que antecederam a morte de uma pessoa, quando as circunstâncias do crime contra a vida não foram elucidadas. 

Nesses casos, é realizada uma investigação para averiguar as possíveis causas do óbito de natureza não esclarecida, em que se coletam dados sobre as aspectos subjetivos da vítima (sentimentos, personalidade, comportamento, estilo de vida,  pensamentos, trabalho, conhecimento), fatores psicossociais, dinâmica familiar e social, relacionamentos afetivos (amorosos e de amizade), entre outros.

É na análise imparcial desses dados e detalhes que se faz possível a reconstrução do perfil e compreensão do estado mental do indivíduo antes de sua morte até então indeterminada - que pode ter se dado de forma natural, acidental, suicídio (auto-inflingida) ou homicídio (crime), de modo a auxiliar os médicos legistas.

Assim, são analisados documentos relativos à pessoa falecida que possam conter informações relevantes, como telefone celular (mensagens escritas, fotos, vídeos e áudios enviados), computador, diários, bilhetes, prontuários médicos; além disso, são colhidos depoimentos de cônjuge/ companheiro(a)/ namorado(a), familiares, parentes, amigos, colegas de trabalho, funcionários, médico(s), que conheciam e conviviam proximamente ao indivíduo no período que antecedeu o passamento. 

A autópsia psicológica é meio de prova não prevista expressamente no Código de Processo Penal (CPP), sendo admitida como prova atípica por analogia ao Código de Processo Civil (CPC), em razão do princípio da busca pela verdade real. Assim:

CPPArt. 3.º  A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

CPCArt. 369. As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.

Importa dizer que a autópsia psicológica ainda é pouco utilizada no Brasil e esse meio de prova ainda não foi padronizado pela comunidade científica, sendo importante fixar critérios para a sua realização de modo a que seja considerada válida e fidedigna, diante da subjetividade inerente a esse instrumento de avaliação.

Logo, em sendo apresentado o laudo pericial perante o Tribunal do Júri - que julga os crimes contra a vida -, caberá aos jurados analisar as suas conclusões de forma criteriosa e cautelosa, sempre em comparação com o restante das provas apresentadas, a fim de verificar se há sintonia entre as mesmas.

Segue recente julgado do Superior Tribunal de Justiça acerca da validade da autópsia psicológica, decisão esta proferida em processo crime onde se tentou, através da impetração de habeas corpus, o afastamento do referido meio de prova. Vejamos:


HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO. PRONÚNCIA FUNDADA EM ELEMENTOS JUDICIALIZADOS. CONTROVÉRSIA ACERCA DA CAUSA MORTIS DEVERÁ SER SOLUCIONADA PELO CONSELHO DE SENTENÇA. AUTÓPSIA PSICOLÓGICA. PROVA ATÍPICA. FALIBILIDADE DE PROVAS CIENTÍFICAS. CONTROLE DE ADMISSIBILIDADE. VIÉS SUBJETIVO. COTEJO COM DEMAIS PROVAS ACOSTADAS AOS AUTOS. ORDEM DENEGADA.

1. A decisão de pronúncia funciona como um filtro pelo qual apenas são submetidas as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo Conselho de Sentença.

2. Exige-se, em termos de standard probatório, a existência de lastro probatório judicializado, produzido com observância do contraditório e da ampla defesa, na presença das partes e do juiz.

3. Não cabe às instâncias ordinárias, tampouco a esta Corte Superior, valorar as provas dos autos e decidir pela tese prevalente, sob pena de violação da competência constitucional conferida ao Conselho de Sentença. É adequado, tão somente, averiguar se a pronúncia encontra respaldo no caderno probatório, o que ficou demonstrado no caso em exame.

4. O laudo pericial impugnado neste writ foi elaborado em fase inquisitorial. Nesse contexto, o simples pedido de cooperação da Delegada-chefe ao Instituto Médic o Legal, que integra a estrutura da própria Polícia Civil do Distrito Federal, não é capaz de macular, por si só, a lisura da expert, que foi convocada para atuar dentro da sua área de conhecimento técnico. Ademais, o laudo pericial foi subscrito por outras duas pessoas, que não tiveram sua parcialidade impugnada.

5. É uníssona a compreensão de que a busca pela verdade no processo penal encontra limitação nas regras de admissão, de produção e de valoração do material probatório, o qual servirá de suporte ao convencimento do julgador; afinal, os fins colimados pelo processo são tão importantes quanto os meios que se utilizam para alcançar seus resultados.

6. Não vigora no campo penal um sistema rígido de taxatividade dos meios de prova, sendo admitida a produção de provas não disciplinadas em lei, desde que obedecidas determinadas restrições.

A análise sobre a validade da prova atípica perpassa, pois, pelo campo epistemológico.

7. É necessário que se estabeleçam critérios de verificabilidade das provas científicas, que não são infalíveis, com o intuito de se evitar o cometimento de injustiças epistêmicas.

8. A "autópsia psicológica", raras vezes utilizada na praxis forense brasileira, consiste em exame retrospectivo que busca compreender os aspectos psicológicos envolvidos em mortes não esclarecidas.

Trata-se de meio de prova ainda não padronizado pela comunidade científica e erigido, inegavelmente, em aspectos subjetivos.

9. Na espécie, o laudo foi subscrito por um agente policial e dois peritos médicos legistas e se baseou em entrevistas acostadas aos autos, permitindo às partes a sindicabilidade e o confronto com a fonte originária de prova. Ademais, os assistentes técnicos puderam contestar sua cientificidade no curso do processo e uma das peritas subscritoras será inquirida em plenário.

10. Assim, incumbirá aos jurados, no exercício da sua soberana função constitucional, realizar o devido cotejo do laudo com o acervo probatório acostado aos autos para decidir acerca da existência de autoria e materialidade delitivas.

11. Ordem denegada.

(HC n. 740.431/DF, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 13/9/2022, DJe de 19/9/2022.) Grifos nossos


Por fim, cumpre referir que também no direito processual civil é plenamente viável a utilização de tal meio de prova atípico, a exemplo das complexas situações envolvendo seguro de vida contratado pouco antes do óbito (em que as seguradoras recusam o pagamento da cobertura aos beneficiários sob a alegação de tratar-se de suicídio premeditado) e da assinatura de documentos importantes (como uma procuração ou testamento) ou movimentações financeiras vultosas por pessoas acometidas de doenças neurodegenerativas graves, estando ou não interditadas (em que se mostra difícil saber quando a enfermidade começou a se manifestar e interferir na capacidade civil do indivíduo). Como apurar, de forma pretérita, o real desejo/ vontade da pessoa no momento da realização dos atos jurídicos? 

No tocante ao laudo pericial, seguem as disposições da lei processual civil:


Art. 473. O laudo pericial deverá conter:

I - a exposição do objeto da perícia;

II - a análise técnica ou científica realizada pelo perito;

III - a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou;

IV - resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público.

§ 1.º No laudo, o perito deve apresentar sua fundamentação em linguagem simples e com coerência lógica, indicando como alcançou suas conclusões.

§ 2.º É vedado ao perito ultrapassar os limites de sua designação, bem como emitir opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do objeto da perícia.

§ 3.º Para o desempenho de sua função, o perito e os assistentes técnicos podem valer-se de todos os meios necessários, ouvindo testemunhas, obtendo informações, solicitando documentos que estejam em poder da parte, de terceiros ou em repartições públicas, bem como instruir o laudo com planilhas, mapas, plantas, desenhos, fotografias ou outros elementos necessários ao esclarecimento do objeto da perícia. (grifo nosso)


Ainda no CPC encontramos disposições acerca da perícia complexa, que envolve mais de uma área de saber, como é o caso daquela que concilia os conhecimentos de um Psicólogo e de um Médico Psiquiatra (para aferir a saúde mental da pessoa):

 Art. 475. Tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, o juiz poderá nomear mais de um perito, e a parte, indicar mais de um assistente técnico.

Por certo que a reconstrução da biografia de um ser humano se trata de tarefa de difícil realização, por isso a importância e necessidade de um trabalho sério, com bases científicas sólidas e concatenado com outros meios de prova colhidos.


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Dívidas Tributárias de Imóvel Adquirido em Leilão

Importante tema recentemente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça - que alterou totalmente a jurisprudência/ entendimento que até então vinha sendo adotado pela Corte -, diz respeito à proibição de se exigir do arrematante de imóvel em leilão o pagamento de créditos tributários incidentes sobre o bem arrematado cujos fatos geradores sejam anteriores à alienação judicial - ainda que haja expressa previsão no edital de que a responsabilidade pelo adimplemento é do adquirente.

Por ocasião do julgamento, em caráter repetitivo, dos Recursos Especiais - REsp n.º 1.914.902, REsp n.º 1.944.757 e REsp n.º 1.961.835 -, foi determinado que inexiste responsabilidade tributária do arrematante de um imóvel quanto ao pagamento de débitos de IPTU incidentes sobre o bem alienado em hasta pública que sejam anteriores à data da aquisição. Ou seja: no momento em que um imóvel vai a leilão e é arrematado, eventuais dívidas tributárias pretéritas não podem ser repassadas ao adquirente, ainda que o edital publicado estabeleça o contrário.

Isso porque o Código Tributário Nacional (CTN) assim dispõe sobre a questão:

Art. 130. Os créditos tributários relativos a impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, e bem assim os relativos a taxas pela prestação de serviços referentes a tais bens, ou a contribuições de melhoria, sub-rogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, salvo quando conste do título a prova de sua quitação.

Parágrafo único. No caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço.

Assim, temos que a regra geral contida no caput do artigo 130 do CTN é de que o adquirente de um imóvel (como no caso de uma compra e venda normal) passa a ser responsável pelo pagamento de impostos, taxas e contribuições de melhorias incidentes sobre o bem, anteriores à transmissão da propriedade. A exceção é quando a aquisição se dá em hasta pública, conforme prevê o parágrafo único.

O assunto se mostra relevante porque não raro os editais de leilão determinam que o adquirente do bem imóvel passa a ser responsável pela quitação das dívidas pendentes, as quais são mencionadas no ato administrativo por força do artigo 886, inciso VI do CPC. Todavia, a prévia ciência e eventual concordância do arrematante em assumir tais débitos não é capaz de torná-lo sujeito passivo da obrigação, face ao comando contido no Código Tributário Nacional. 

E aqui há de se fazer uma distinção entre as modalidades de aquisição de domínio: a forma derivada (quando se transmite o bem e tudo que o acompanha - propter rem) e a direta/ originária (quando o arrematante está livre de quaisquer ônus).

Tese firmada no Tema Repetitivo n.º 1.134 do STJ: Diante do disposto no art. 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação.

A tese deverá ser observada pelos editais de leilão lançados a partir da publicação da ata de julgamento do recurso, ressalvadas as ações judiciais e/ou pedidos administrativos pendentes de apreciação, para os quais a tese se aplica de imediato. 


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Liberdade Religiosa e Tratamento Diferenciado

Anteriormente, tratamos aqui no ::BLoG:: sobre Os Direitos Fundamentais e mais especificamente acerca das Testemunhas de Jeová x Transfusão de Sangue (clique nos links para ler os artigos).

Nos  últimos dias, o Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou sobre o tema liberdade religiosa e tratamento diferenciado em razão do julgamento de dois recursos extraordinários (RE n.º 979.742 e RE n.º 1.212.272). Ao ponderar e deliberar sobre o assunto, a Corte Superior, por unanimidade e em sede de repercussão geral (Temas 952 e 1.069), entendeu que, em havendo possibilidade de tratamento alternativo à transfusão de sangue no Sistema Único de Saúde (SUS), é obrigação do Estado assegurar a sua realização, devendo custear procedimento médico/ tratamento diferenciado a todos aqueles que, em razão de suas crenças e valores pessoais, não aceitam receber transfusão de sangue ao se submeter à cirurgia - ainda que haja a necessidade de deslocamento para outro Município ou viagem para outro Estado da federação que disponibilize os meios (como exemplo, a máquina de recuperação intraoperatória de sangue). 

Todavia, tal decisão deve ser tomada de forma individual pelo paciente adulto de forma livre, consciente e esclarecida, ou seja, deve ser precedida de informação médica clara e completa acerca do diagnóstico, tratamento, benefícios e eventuais riscos do procedimento alternativo. A decisão particular é soberana, independentemente da opinião/ julgamento de terceiros, "de quanto possam parecer irracionais, imprudentes e ilógicas aos outros", nas palavras do Ministro Barroso. Com relação a crianças e adolescentes, há de prevalecer o princípio do melhor interesse para a vida e a saúde, sendo possível o tratamento diferenciado se não contrariar a indicação médica.

Um dos meios mais seguros de manifestar sua convicção/ autonomia individual é a escritura pública contendo as diretivas antecipadas de vontade, documento firmado em Tabelionato onde a pessoa informa sua consciência religiosa de não receber sangue/ plasma/ plaquetas. 

Conforme explicitado pelo Ministro Barroso, relator de um dos recursos, 

A dignidade humana exige o respeito à autonomia individual na tomada de decisões sobre a saúde e o corpo. Já a liberdade religiosa impõe ao Estado a tarefa de propiciar um ambiente institucional, jurídico e material adequado para que os indivíduos possam viver de acordo com os ritos, cultos e dogmas da sua fé, sem coerção ou discriminação.

Por seu turno, o relator do outro recurso, Ministro Gilmar Mendes, aduziu que

O direito à vida digna parte do pressuposto de que um adulto capaz e consciente pode dirigir suas ações e condutas de acordo com suas convicções, a significar que mesmo naquelas situações nas quais atuar com a fé professada põe a própria vida circunstancialmente em risco,, subsiste o direito de escolha a determinado tratamento de saúde”.

Em razão da liberdade religiosa e da autodeterminação, mostra-se legítima a recusa pelas Testemunhas de Jeová de tratamento que envolva transfusão de sangue, não sendo possível ao médico impor procedimento recusado por paciente no gozo de sua capacidade civil plena, de forma livre, consciente e informada.


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Medicamento Off Label

Para que um medicamento seja fabricado e comercializado no Brasil, ele precisa antes ser registrado e homologado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, onde também constarão as informações referentes à sua indicação de uso.

Ocorre que algumas medicações podem ser ministradas em situações diversas, que ainda não constam na bula por estarem em fase experimental/ de estudos ou de avaliação pela agência reguladora - o que chamamos de uso off label. Nesse caso o médico, por sua conta e risco, e de acordo com as condições clínicas apresentadas pelo paciente, prescreve determinado remédio fora das especificações da bula que entende possa auxiliar na melhora do estado de saúde.

Vale dizer: muitas vezes não existem substitutos terapêuticos aprovadas para o tratamento de determinadas doenças ou para aquelas pessoas em específico (crianças, idosos, gestantes), sendo o medicamento off label a única alternativa apresentável no momento, ainda que possa expor os pacientes a certos riscos - razão pela qual o médico está assumindo a responsabilidade de vir a responder por erro médico.

No que tange aos planos de saúde, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que as Operadoras não podem negar a cobertura de tratamentos prescritos por médico sob a alegação de que a sua indicação não consta na bula, uma vez que quem decide sobre a adequação do medicamento à enfermidade do paciente é exclusivamente o MÉDICO, ainda que eu caráter experimental. Assim, eventual recusa de custeio de fármaco aprovado e registrado pela ANVISA é vista como conduta abusiva, por colocar o consumidor em desvantagem exagerada.

Como exemplo de uso off label de medicamento podemos citar aqueles utilizados no tratamento para o câncer, cuja obrigação de fornecimento consta expressamente na Lei n.º 9.656/98 (reitera-se: constando a indicação na bula ou não).

Ademais, vale dizer que a negativa de fornecimento pelas operadoras de planos de saúde - de modo a atrasar/ obstar a realização de tratamento eficaz e adequado da doença, causando piora no estado clínico e emocional da pessoa - é plenamente apta a ensejar o reconhecimento de danos morais ao paciente.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Maconha, 40 gramas: Usuário ou Traficante?

Em julgamento paradigmático (RE n.º 635.659), o Supremo Tribunal Federal, além de descriminalizar o porte e uso de maconha, definiu como parâmetro objetivo que a posse de até 40 gramas da erva (ou 06 plantas fêmeas de cannabis sativa) - a princípio e presumidamente - não configura tráfico de drogas. 

Isso porque a quantidade definida na tese fixada pela Corte Superior em sede de repercussão geral poderá ser relativizada: se houve prova de que a droga será objeto de venda (ter consigo balança de precisão, anotações sobre valores/clientes que denotem o intuito de comercialização, por exemplo), independentemente da quantidade encontrada, o portador será enquadrado como traficante. Por outro lado, ainda que a quantidade apreendida seja superior a 40 gramas, o Julgador poderá entender tratar-se de mero usuário e aplicar a atipicidade da conduta.

Importante ressaltar que o STF não está legalizando o uso da maconha, tendo decidido apenas em relação à natureza da punição a ser aplicada ao usuário, que deixa de ser tratado como alguém que cometeu um crime (ilícito penal) e passa a ser considerado alguém que praticou uma infração administrativa: nos termos do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei n.º 11.343/2006), a este serão aplicadas as sanções de advertência sobre os efeitos do uso da droga e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. A prestação de serviços à comunidade deixa de ser utilizada em razão de seu caráter punitivo. 

Sempre importante destacar que a Constituição Federal tem como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana e assegura a todos, indistintamente, o direito à privacidade, honra, imagem e intimidade - além da autodeterminação.

Além disso, há de se ter em mente que em nosso país há uma evidente distinção/ discriminação entre os usuários e, conforme consta do voto proferido pelo Ministro Barroso, a fixação de um critério objetivo para definir a quantidade de droga apta a caracterizar o consumo pessoal tem por finalidade também eliminar a disparidade no tratamento de casos semelhantes em diferentes contextos sociais.


STF - Tema 506 - Tipicidade do porte de droga para consumo pessoal


1) ⁠Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III);

2) ⁠As sanções estabelecidas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei 11.343/2006 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;

3) Em se tratando de posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, sendo vedada a lavratura de auto de prisão em flagrante ou de termo circunstanciado;

4) Nos termos do §2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para uso próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;

5) A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos indicativos do intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes;

6) Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários;

7) Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4 deverá o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio;

8) A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir pela atipicidade da conduta, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.


segunda-feira, 17 de junho de 2024

Enchentes - Contratos de Locação

Em razão das enchentes que ocorreram no Rio Grande do Sul e o reconhecimento de estado de calamidade pública por decretos estaduais (Dec. n.º 57.596/24 e Dec. n.º 57.600/24) e nacional (DL n.º 36/24), também os contratos de locação dos imóveis atingidos pelos alagamentos estão sendo objeto de questionamentos.

Ao tratar sobre caso fortuito e força maior, o artigo 393 do Código Civil assim dispõe:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Em síntese, podemos dizer que caso fortuito ou força maior são aqueles fatos ou eventos imprevisíveis ou de difícil previsão, alheios ao comportamento e vontade das partes (e não podem ser evitados), que provocam consequências para outras pessoas, porém excluem a responsabilidade civil. Ou seja, ainda que impeçam o cumprimento de obrigação anteriormente pactuada, não dão direito a indenização.

Logo, pela redação da norma legal, nem locador, nem locatário, respondem pelos prejuízos, a não ser que tenham assumido os riscos contratualmente. Há de se ressaltar que a regra acima não se aplica indistintamente a todas as relações contratuais, devendo cada situação ser analisada de forma individual.

Mas e no caso dos imóveis alugados que sofreram danos estruturais? Quem tem a responsabilidade pelos consertos?

A Lei de Locações (Lei n.º 8.245/91) assim prevê em seu artigo 22:

Art. 22. O locador é obrigado a:

(...) III - manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel;

Assim, temos que, por lei o locador/ proprietário tem o dever de realizar os reparos necessários - exceto se o locatário contribuiu para a ocorrência dos danos ou se algo em sentido diverso foi convencionado no contrato de locação.

Relativamente ao pagamento (ou não) de alugueis e possibilidade de extinção do contrato de locação, vejamos o que dispõe o artigo 26 da Lei de Locações:

Art. 26. Necessitando o imóvel de reparos urgentes, cuja realização incumba ao locador, o locatário é obrigado a consenti-los.

Parágrafo único. Se os reparos durarem mais de dez dias, o locatário terá direito ao abatimento do aluguel, proporcional ao período excedente; se mais de trinta dias, poderá resilir o contrato.

Por seu turno, o artigo 567 do CC/02, aplicado de forma supletiva, assim determina:

Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava.

Logo, há de se verificar a possibilidade de realização de reparos no imóvel afetado pelas enchentes, ou seja, se é possível resgatar suas condições de habitabilidade. A depender da resposta, se aplica ou a redução do aluguel, ou a resolução do contrato. Caso seja viável o conserto, é devido o pagamento de aluguel pelo locatário nos primeiros 10 (dez) dias de reparos, sendo que os demais (excedentes) serão suportados pelo locador. Em ultrapassando os 30 (trinta) dias, é possível postular a rescisão do contrato de locação.

A princípio, esses prazos devem ser contados da data em que se verificou a existência e a extensão dos danos, além da necessidade de promover os reparos - exceto na situação de perda do imóvel (caso de desmoronamento, ou quando a água levou a casa na enchente), em que se conta do dia do evento danoso, data a partir do qual não seriam devidos alugueis.

Mas e nas situações em que, embora o imóvel não tenha tido perda total, as inundações não permitiram o seu uso? Caso, por exemplo, de residências e lojas situadas em áreas alagadas, em que foi necessário aguardar a água baixar para se ter acesso. Nesses casos em que houve a impossibilidade temporária de uso do imóvel, é de bom tom que o valor do aluguel seja readequado/ reduzido, proporcionalmente ao tempo em que não pode ser utilizado.

Por fim, quanto à ocorrência de pequenos danos no imóvel, cabe ao locatário promover a limpeza e conservação do bem, nos termos do artigo 23 da Lei:

Art. 23. O locatário é obrigado a: (...)

II - servir - se do imóvel para o uso convencionado ou presumido, compatível com a natureza deste e com o fim a que se destina, devendo tratá-lo com o mesmo cuidado como se fosse seu;

III - restituir o imóvel, finda a locação, no estado em que o recebeu, salvo as deteriorações decorrentes do seu uso normal;

(...) XII - pagar as despesas ordinárias de condomínio.

§ 1º Por despesas ordinárias de condomínio se entendem as necessárias à administração respectiva, especialmente: (...)

c) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de uso comum;

Cumpre reiterar que, para além do disposto em lei (regra geral), há de se analisar o o contrato de locação firmado entre as partes, para fins de verificar se há disposição específica quanto a situações de calamidade/ caso fortuito e força maior. 

Além disso, importante dizer que, ao versar sobre os contratos, o Código Civil determinou em seu artigo 113 que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração; já o artigo 422 que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé – esta que possui deveres inerentes como o de cuidado, transparência, confiança, informação, lealdade, segurança e cooperação, os quais devem ser observados em todos os contratos.


terça-feira, 28 de maio de 2024

Enchentes - Benefícios Financeiros e Habitacionais

No início deste mês de maio, uma catástrofe de proporções gigantescas se abateu sobre o nosso Rio Grande do Sul. Em razão das fortes e incessantes chuvas torrenciais, que causaram inundações e alagamentos em mais de 90% das cidades do Estado, milhares de gaúchos tiveram que deixar seus lares e buscar abrigo nas casas de familiares e amigos, ou em escolas, ginásios, paróquias e universidades. Em que pese todo esse clima de assombro e incredulidade, face ao caos e destruição instaurados, a corrente de amor e solidariedade que se formou trouxe alento e esperança em dias melhores... e na bondade humana. O Brasil se uniu no propósito de agir, com brevidade, em benefício das comunidades atingidas, enviando alimentos, roupas, cobertores, colchões, medicamentos. Tem sido uma luz em meio à escuridão.

Passado esse período mais crítico, embora muitas pessoas ainda não tenham conseguido retornar aos seus lares, seja por impossibilidade de acesso (a água ainda não baixou), seja porque atualmente os estragos não permitem o uso do imóvel como moradia, seja porque a residência foi levada pela correnteza, parte da população já está realizando a limpeza e se reacomodando nas casas/ apartamentos atingidos.

Neste artigo, vamos falar um pouco sobre benefícios financeiros que estão sendo disponibilizados pelas três esferas do Governo à população e sobre questões relacionadas aos imóveis atingidos pelas inundações e alagamentos - Benefícios Assistenciais Habitacionais.


Auxílio Reconstrução

Benefício do Governo Federal no valor de R$ 5.100,00 (cinco mil e cem reais) pago às famílias residentes em áreas atingidas pelas enchentes, que tiveram que abandonar suas casas de forma temporária ou definitiva e estão desalojadas ou desabrigadas, nos municípios em situação de emergência ou calamidade pública. Não é exigida inscrição em cadastro social, tampouco é estabelecida faixa de renda. Beneficiários do Bolsa Família podem receber este auxílio se estiverem nessa situação. O pagamento é realizado pela Caixa Econômica Federal.


Programa Volta por Cima

Benefício pago pelo Estado do Rio Grande do Sul no valor de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) por família atingida pelas enchentes, que esteja desalojada, desabrigada ou que já retornou ao lar. É necessária inscrição no CadÚnico e possuir renda per capita de até R$ 218,00 (duzentos e dezoito reais). O pagamento é realizado através do Cartão Cidadão.


PIX SOS Rio Grande do Sul

Benefício no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) por família que esteja desalojada, desabrigada ou que já retornou ao lar. É necessária inscrição no CadÚnico e possuir renda familiar de até 03 (três) salários mínimos - R$ 4.236,00 - e per capita de até 01 (um) salário mínimo - R$ 1.412,00. O pagamento é realizado através de um cartão pré-pago disponibilizado pelo programa.

Essa benesse não é cumulativa com o Programa Volta por Cima.


Saque Calamidade FGTS

Famílias que tiveram suas casas atingidas pelas enchentes podem receber o valor de até R$ 6.220,00 (seis mil duzentos e vinte reais) a título de FGTS. Não há condicionante de renda, bastando a solicitação do benefício diretamente no aplicativo do FGTS. O valor é depositado na conta de titularidade do postulante.


Pagamento do Financiamento Habitacional

Como forma de apoiar as regiões que se encontram em estado de calamidade, a Caixa Econômica Federal possibilita a PAUSA de 06 (seis) meses nas prestações a vencer dos contratos de financiamento habitacional (com recursos do FGTS e SBPE) pagos rigorosamente em dia, a contar imediatamente após a realização da negociação. Esta deverá ser realizada presencialmente em uma agência da CEF e não há necessidade de pagamento de entrada no ato da renegociação.

Já nos casos em que há prestações em atraso, é possível a incorporação de até 24 (vinte e quatro) parcelas não pagas ao saldo devedor, ou seja, o valor das prestações em atraso são adicionadas ao saldo devedor total do contrato de financiamento. Após realizado isso, é possível a PAUSA de 06 (seis) meses nas prestações a vencer. 

Nos contratos habitacionais, na data da pausa, não são cobrados encargos por atraso das parcelas vencidas, que são incorporadas ao saldo devedor (que naturalmente irá aumentar). Assim, o saldo devedor é recalculado pela inclusão das parcelas não pagas e das parcelas pausadas, modificando o valor do seguro e das prestações futuras.


Acionamento do Seguro Habitacional

Os imóveis adquiridos e/ou construídos através de financiamento por meio da Caixa Econômica Federal possuem cobertura para DFI (danos físicos ao imóvel). Assim, em caso de prejuízos causados por alagamento (além de incêndio, queda de raio, explosão, vendaval, destelhamento e desmoronamento), a Caixa Seguradora indenizará o proprietário com o valor necessário para recompor os danos no imóvel. 


Benefícios relacionados ao pagamento de IPTU parcelado (isenção/ prorrogação do vencimento), Programa Estadia Solidária (auxílio financeiro para as famílias que tiveram que deixar suas residências em razão das inundações e precisaram se abrigar na casa de amigos e familiares até poderem retornar à casa), Bônus Moradia (concessão de um valor para a família adquirir um imóvel em área regular e que não seja considerada de risco) e da Lei de Moradia - n.º 11.888/08 (que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social para sua própria moradia) devem ser regulamentados pelas Prefeituras das cidades atingidas pelas enchentes. 

__________________________________

* Desabrigado: aquele que perdeu a casa e está em um abrigo público. 

* Desalojado: aquele que teve de deixar sua casa - mas não necessariamente a perdeu - e se encontra na casa de um parente, amigo ou conhecido.


domingo, 28 de abril de 2024

Eventos Climáticos e Interrupção da Energia Elétrica

Nos últimos meses, foram inúmeros os episódios de fenômenos naturais extremos (ventos, tempestades, inundações, ciclones) que ocasionaram queda/ interrupção de energia elétrica por diversos dias no estado do Rio Grande do Sul. 

É evidente que as mudanças climáticas têm aumentado a frequência e gravidade dos eventos danosos. Na mesma proporção, cresceram de forma vertiginosa as ações judiciais determinando que as empresas concessionárias restabeleçam os serviços de energia elétrica em determinados prazos, sob pena de aplicação de elevadas multas (a serem calculadas levando-se em conta o número de unidades consumidoras atingidas). Algumas decisões, inclusive, determinam a apresentação de planos de contingência e de ações emergenciais visando evitar que o fato não se repita no futuro.

Por certo que não é possível ao ser humano prever/ interferir/ evitar a ocorrência de eventos climáticos como chuvas e ventos, ainda mais os de grande magnitude. Porém, o Judiciário tem entendido que cabe às concessionárias ampliar, melhorar e reparar as suas redes para melhor atender à população (unidades residenciais, prestadoras de serviços essenciais e contínuos e comércio).

Importa consignar que, diante da tecnologia cada vez mais avançada, por vezes as tempestades extremas podem ser previstas com antecedência - tanto que são emitidos alertas meteorológicos indicando a possibilidade de ocorrência. Assim, é plenamente possível que as concessionárias de energia ajam preventivamente de modo a evitar, ou pelo menor amenizar, os prejuízos experimentados.

Inclusive, os tribunais superiores já sedimentaram o entendimento de que a ocorrência de intempéries do tempo, como chuvas e temporais, não exclui o dever de indenizar, uma vez que se trata de eventos previsíveis, cabendo à concessionária manter infra-estrutura capaz de impedir ou minimizar os danos deles decorrentes - sendo ônus da empresa eventualmente comprovar a excepcional gravidade do evento climático, cujas proporções foram por demais extensas (apta a ensejar o reconhecimento de uma excludente de responsabilidade - caso fortuito, força maior), a ponto de impedir a normalização dos serviços em tempo razoável.

Nos termos do artigo 362 da Resolução Normativa n.º 1.000/2021 da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) - a qual revogou a RN n.º 414/2010, os prazos para religação/ restabelecimento do serviço da luz são:

Art. 362. A distribuidora deve restabelecer o fornecimento de energia elétrica nos seguintes prazos, contados de forma contínua e sem interrupção:

I - 4 horas: para religação em caso de suspensão indevida do fornecimento;

II - 4 horas: para religação de urgência de instalações localizadas em área urbana;

III - 8 horas: para religação de urgência de instalações localizadas em área rural;

IV - 24 horas: para religação normal de instalações localizadas em área urbana; e

V - 48 horas: para religação normal de instalações localizadas em área rural.

Neste sentido é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, Nº 70085754349, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em: 18-08-2023.

No final do mês de janeiro deste ano, partes da cidade de Porto Alegre ficaram mais de uma semana sem energia elétrica, quando o Ministério Público ajuizou ação em face da empresa prestadora visando o restabelecimento dos serviços, além da responsabilização e consequente condenação ao ressarcimento dos prejuízos enfrentados (materiais e morais), além da aplicação de multas milionárias. 

Sempre importante lembrar que as concessionárias de serviços públicos, por força de expressa previsão legal, devem obedecer os mesmos princípios aplicáveis à Administração Pública, elencados no caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, a saber: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência

Nos exatos termos do § 6.º do referido artigo, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Ademais, plenamente aplicável ao caso o Código de Defesa do Consumidor, em especial os artigos a seguir transcritos:


Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

.

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido.

.

Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.

.

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.


segunda-feira, 8 de abril de 2024

Condomínio e Animais de Estimação

Anteriormente, no artigo Sobre Regras de Condomínio (clique no link para ler), já tratamos brevemente acerca da impossibilidade de proibição de animais domésticos em apartamentos ou unidades autônomas situadas em condomínios, ainda que haja previsão expressa na convenção ou regimento interno nesse sentido.

Inclusive, por ocasião do julgamento do REsp n.º 1.783.076, ainda em 2019, o Superior Tribunal de Justiça decidiu no seguinte sentido:

Se a convenção não regular a matéria, o condômino pode criar animais em sua unidade autônoma, desde que não viole os deveres previstos nos arts. 1.336, IV, do CC/2002 e 19 da Lei nº 4.591/1964.

Se a convenção veda apenas a permanência de animais causadores de incômodos aos demais moradores, a norma condominial não apresenta, de plano, nenhuma ilegalidade.

Se a convenção proíbe a criação e a guarda de animais de quaisquer espécies, a restrição pode se revelar desarrazoada, haja vista determinados animais não apresentarem risco à incolumidade e à tranquilidade dos demais moradores e dos frequentadores ocasionais do condomínio.

Os artigos referidos possuem a seguinte redação: 

Art. 1.336. São deveres do condômino:
(...) IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes.

Art. 19. Cada condômino tem o direito de usar e fruir, com exclusividade, de sua unidade autônoma, segundo suas conveniências e interesses, condicionados, umas e outros às normas de boa vizinhança, e poderá usar as partes e coisas comuns de maneira a não causar dano ou incômodo aos demais condôminos ou moradores, nem obstáculo ou embaraço ao bom uso das mesmas partes por todos.

Logo, respeitadas algumas regras de convivência e bom senso, não há que se cogitar a proibição dos animais domésticos em condomínios: não podem fazer barulho excessivo e/ou incessante (sob pena de advertência e multa), devem ser vacinados, devem usar coleira (se forem de médio e grande porte), não devem fazer as necessidades em áreas comuns, nem sujar, devem estar sob os cuidados do tutor quando eventualmente tiverem que circular no edifício, usar focinheira (a depender da raça do cachorro), e também é possível a limitação do número de animais por questões de higiene e bem-estar dos próprios pets (não se mostra razoável, por exemplo, ter 20 gatos em um apartamento pequeno). 

Mas e quando o pet é um animal diferente, como uma cobra. Pode?

PODE. Embora seja um animal de estimação não convencional, é possível criar uma serpente (jiboia) não peçonhenta (ou seja, que não produza veneno) em apartamento, desde que ela tenha sido obtida em criadouro certificado pelo IBAMA (com nota fiscal), e não retirada da natureza - o que configura tráfico de animais, ou seja, crime. Até porque essa cobra terá instalado um microchip de rastreamento para que tanto o órgão ambiental quanto o dono possam monitorá-la. Já para importar uma cobra exótica, é obrigatório ter uma autorização especial. 

A regra se aplica a aranhas (tarântulas), pássaros e pequenos mamíferos. É aceitável a sua presença no condomínio desde que não perturbe o sossego, tampouco ofereça riscos/ perigo à vizinhança. Caso contrário, o animal poderá ser apreendido e encaminhado a um zoológico/santuário, e aplicada multa ao proprietário.

 

quarta-feira, 20 de março de 2024

Dever de Informação em Procedimentos Cirúrgicos

Anteriormente, já tratamos aqui no ::BLoG:: acerca do Direito Médico e o Consentimento InformadoAssistência à Saúde: Humanização das RelaçõesTestemunhas de Jeová x Transfusão de Sangue (clique para ler os artigos).

Nas questões relacionadas à saúde, o dever de informação se mostra imprescindível, tendo em vista que, conforme já aduzido em prévio artigo, o profissional médico deve prestar todas as informações necessárias ao paciente, de forma clara, objetiva, verdadeira e precisa, de modo a que este tenha plana ciência de todos os benefícios e riscos/ implicações que poderão advir da terapêutica recomendada (tanto no presente quanto no futuro) bem como de alternativas viáveis (e disponíveis) àquele procedimento. 

Além disso, o princípio da autonomia da vontade (oriundo do Direito Civil) diz respeito à possibilidade do indivíduo estipular livremente, e decidir de acordo com seus interesses. E para que seja exercido de forma plena pelo paciente, há de ser cumprido o dever de informação pelo médico, de modo mais completo possível. Assim, o termo de consentimento do paciente somente terá validade quando este receber todas as informações necessárias (de forma compreensível, sem termos técnicos) para que possa expressar - com convicção, segurança e consciência - a sua vontade.

Sobre o tema, recentemente a 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o descumprimento do dever de informação tem implicações distintas, conforme o procedimento cirúrgico seja eletivo (não urgente, programada pelo paciente) ou não eletivo (caso de urgência ou emergência).

Conforme entendimento da Corte Superior, nas situações que denotem gravidade, a prestação de informações prévias ao paciente terá menos influência na decisão a ser tomada pela própria pessoa ou por seus familiares do que naquela que poderá ser objeto de reflexão e ponderação (não urgente).

No caso concreto que foi a julgamento, a paciente foi a óbito depois de sofrer um choque anafilático decorrente de anestesia geral, quando estava sendo submetida a uma cirurgia para retirada das amígdalas e tratamento de adenoide.

O STJ confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que entendeu não ter sido caso de imprudência, imperícia ou negligência dos médicos que realizaram a cirurgia, sob o fundamento de que o risco existiria de qualquer maneira, independentemente da ciência e anuência prévia da paciente.

Para a Ministra Relatora Isabel Gallotti, no caso de cirurgias fundamentais para o restabelecimento da saúde, com necessidade premente face aos riscos envolvidos, é menos provável que o dever de informação acerca dos riscos da anestesia influencie na decisão acerca de submeter-se ao procedimento, uma vez que a preocupação maior é em salvar a vida do paciente. E no caso em tela, não havia como os médicos saberem de antemão sobre  possibilidade de risco agravado em sendo aplicada a anestesia - portanto, não se poderia reconhecer a negligência. Logo, na visão da Corte, não há fundamento para a a condenação dos profissionais por falha no dever de informação.

Segue abaixo a ementa do julgado na íntegra:


RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ERRO MÉDICO. CIRURGIA NECESSÁRIA PARA TRATAMENTO DE DOENÇA. REAÇÃO ADVERSA À ANESTESIA GERAL. AUSÊNCIA DE ALEGAÇÃO, NA INICIAL, DE FALHA NO DEVER DE INFORMAÇÃO POR PARTE DOS MÉDICOS. RISCOS DA ANESTESIA. FATO NOTÓRIO. DISSÍDIO. DISTINGUISHING NECESSÁRIO.

1. Em observância ao princípio da congruência, o julgador deve se limitar a julgar o que lhe foi demandado (artigos 128 e 460 antigo CPC e artigos 141 e art. 492 novo CPC), devendo haver correlação entre a causa de pedir e o julgado. A atribuição de culpa aos médicos, por motivos diversos daqueles alegados pela parte autora, acarretaria cerceamento de defesa dos réus e julgamento extra petita.

2. Em se tratando de cirurgias necessárias à cura de doenças, a informação a respeito dos riscos da anestesia não é o fator determinante para a decisão do paciente de se submeter ao procedimento ou não, sendo certo que, muitas das vezes, não realizá-lo não é opção.

3. É fato notório que a anestesia geral envolve riscos.

4. Considerando (i) que a autora não alegou falta de cumprimento de dever de informação na inicial; (ii) que a cirurgia da sua filha era necessária à cura da doença que a acometia; (iii) que não se alega prévio conhecimento de alergia a remédios ou outras substâncias que pudesse ter sido relatado aos médicos (IV) que o problema com a menor decorreu de reações adversas à anestesia; (iv) que não é possível prever, com exames prévios, choque anafilático em decorrência de anestesia; e (v) que a perícia judicial "não encontrou no procedimento anestésico qualquer fato que desabone a conduta dos profissionais", não há como responsabilizar os réus neste caso.

5. Recurso especial a que se nega provimento.

(REsp n. 2.097.450/RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 24/10/2023, DJe de 6/11/2023.)


quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Benefício Assistencial para Crianças e Adolescentes

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) constante da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS - Lei n.º 8.742/93) trata-se de benefício assistencial que corresponde à garantia de 01 (um) salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com mais de 65 (sessenta e cinco) anos de idade que comprovarem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, nos termos do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988.

Aqui, a condição de deficiente diz respeito à incapacidade para o trabalho e para a vida independente, de acordo com a redação original do art. 20 da LOAS, ou impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir a participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, conforme redação atual do referido dispositivo.

O intuito da norma legal é assegurar especial proteção para pessoas (e seu núcleo familiar) que se encontram em situação de vulnerabilidade social - estado de miserabilidade, hipossuficiência econômica ou situação de desamparo.  

O benefício assistencial de prestação continuada poderá ser concedido a crianças e adolescentes diagnosticados com transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), transtorno opositivo e desafiador (TOD) e transtorno do espectro autista (TEA), por exemplo, desde que atendidos os requisitos legais - laudo/ exames/ receitas/ atestado médico comprovando a condição de saúde + quesito socioeconômico (risco social/ renda familiar baixa).

No caso dos infantes, não há que se falar em capacidade para o trabalho, sendo analisado o impacto de sua condição à limitação do desempenho de atividades diárias/ restrição da participação social, impedimentos estes de longa duração - pelo menos 02 (dois) anos -, compatíveis com a sua idade. 

O benefício é requerido junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) através de agendamento via sistema MEU INSS, aplicativo ou 135 (ligação), sendo que a criança e o adolescente serão avaliados por médico perito e assistente social. Em não sendo deferida a benesse pelas vias administrativas, é possível ingressar com ação judicial (perante a Justiça Federal) postulando o BPC/LOAS.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Regime de Bens no Casamento após os 70 anos

 Ao tratar sobre o regime de bens entre os cônjuges, o Código Civil assim determina:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; 

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em tese de repercussão geral, que a separação de bens em casamento/ união estável em que uma das pessoas tenha acima de 70 anos não é obrigatória, podendo os cônjuges/ companheiros optarem por regime diferente (comunhão parcial, comunhão universal, participação final nos aquestos).

Isso porque, na visão dos Ministros, a lei civil fere a dignidade, desrespeita o direito de autodeterminação das pessoas idosas, bem como denota discriminação por idade. Afinal, se as pessoas com mais de 70 anos são capazes de praticar atos da vida civil e estão em pleno gozo de suas faculdades mentais, por que não podem dispor sobre seu patrimônio e escolher o regime de bens em seus relacionamentos?

A partir de agora, para afastar a obrigatoriedade legal, é necessário que o casal manifeste sua intenção através de escritura pública, assinada em Tabelionato. Para aqueles que já se encontram casados/ convivendo é possível alterar o regime de bens de modo a produzir efeitos para o futuro, a depender de autorização judicial (casamento) e de escritura pública (união estável). Essa modulação de efeitos ex nunc (daqui pra frente) visa manter hígido o princípio da segurança jurídica, de modo a não afetar processos (como os de inventário ou divisão de bens) que já estejam em andamento.  


STF. Tema 1.236. Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública.


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Vendi o Carro e Levei Multa. E agora?

DEPENDE! De acordo com o artigo 134 da Lei n.º 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro):

Art. 134. No caso de transferência de propriedade, expirado o prazo previsto no § 1º do art. 123 deste Código sem que o novo proprietário tenha tomado as providências necessárias à efetivação da expedição do novo Certificado de Registro de Veículo, o antigo proprietário deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal, no prazo de 60 (sessenta) dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação. 

Art. 123. Será obrigatória a expedição de novo Certificado de Registro de Veículo quando: 

I - for transferida a propriedade. (...)

§ 1º No caso de transferência de propriedade, o prazo para o proprietário adotar as providências necessárias à efetivação da expedição do novo Certificado de Registro de Veículo é de trinta dias, sendo que nos demais casos as providências deverão ser imediatas.

Com relação ao imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA), o artigo 6.º, inciso II, da Lei Estadual n.º 8.115/85 assim prevê:

Art. 6º São solidariamente responsáveis pelo pagamento do imposto e acréscimos devidos: (...) 

II - o proprietário de veículo automotor que o alienar, a qualquer título, até o momento do registro da comunicação no órgão público de trânsito encarregado do registro e licenciamento, inscrição ou matricula; e

Quanto ao tópico, o STJ firmou o Tema Repetitivo n.º 1.118, a saber:

Tema 1.118. Somente mediante lei estadual/distrital específica poderá ser atribuída ao alienante responsabilidade solidária pelo pagamento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - IPVA do veículo alienado, na hipótese de ausência de comunicação da venda do bem ao órgão de trânsito competente.

Assim, pela leitura literal das normas legais, caso a alienação não seja comunicada ao DETRAN, o vendedor responde solidariamente com o comprador pelas multas que o veículo eventualmente venha a receber, bem como pelo imposto do automóvel (IPVA).

Contudo, perante o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul o tema é controverso, eis que algumas Câmaras aplicam a lei em sua literalidade, e outras flexibilizam a norma, desde que haja alguma prova da transferência do veículo.

Nesse sentido são as seguintes decisões:


RECURSO INOMINADO. TURMA RECURSAL PROVISÓRIA DA FAZENDA PÚBLICA. DEPARTAMENTO ESTADUAL DE TRÂNSITO - DETRAN/RS. RESPONSABILIDADE POR INFRAÇÃO DE TRÂNSITO PRATICADA APÓS A VENDA DO VEÍCULO, COMPROVADA DOCUMENTALMENTE. POSSIBILIDADE DE AFASTAMENTO DA PONTUAÇÃO DO PRONTUÁRIO DA ALIENANTE DEVIDO AO CARÁTER PERSONALÍSSIMO DA PENALIDADE. NULIDADE DO AIT DERIVADO POR DIRIGIR SEM CNH. INSUBSISTÊNCIA ANTE A PRESUNÇÃO DE QUE A PROPRIETÁRIA QUE CONSTA NOS CADASTROS DE DETRAN NÃO ERA A CONDUTORA. DEVER DO ANTIGO PROPRIETÁRIO DE COMUNICAR A TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE AO DETRAN, NOS TERMOS DO ART 134 DO CTB. SOLIDARIEDADE ENTRE ALIENANTE E ADQUIRENTE QUANTO AO PAGAMENTO DAS MULTAS. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO DE PEDIDO REFERENTE A OBRIGAÇÃO ENTRE PARTICULARES, EM SEDE DE JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA, EM RAZÃO DA DELIMITAÇÃO DA COMPETÊNCIA, NOS TERMOS DO ART. 5º, II, DA LEI 12.153. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. JULGADO PROCEDENTE EM PARTE O RECURSO.(Recurso Inominado, Nº 50177527420208210021, Primeira Turma Recursal Provisória Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Mirna Benedetti Rodrigues, Julgado em: 28-11-2023).


APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. MULTA POR INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES - IPVA. NÃO CUMPRIMENTO DO DEVER INSCULPIDO NO ART. 134 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DO VEÍCULO AO ÓRGÃO DE TRÂNSITO. TEMA 1.118 DO STJ. RESPONSABILIZAÇÃO SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO REGISTRAL. 1. Caso em que da reunião dos documentos juntados pela parte autora com àqueles acostados pelos réus, o que se verifica é que, até a presente data, a parte demandante não cumpriu com o dever insculpido no art. 134 do CTB, somente tornando público ao órgão de trânsito a efetivação da alienação do veículo através desta ação. 2. A simples prova acerca da tradição do veículo, jamais comunicada ao órgão executivo estadual de trânsito, não afasta a responsabilidade administrativa do proprietário constante do cadastro registral pelas consequências impostas posteriormente e vinculadas ao veículo, quais sejam, pagamento de IPVA e multas de trânsito, bem como atribuição de pontos na CNH, consoante interpretação conjunta do art. 134 do CTB, do art. 6º, inciso II, da Lei Estadual nº 8.115/1985 e do Tema nº 1.118 do STJ. (...) APELAÇÕES PROVIDAS.(Apelação Cível, Nº 50016725020118210021, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Uhlein, Julgado em: 23-11-2023).


De outro lado, seguem acórdãos que preveem a exclusão da responsabilidade:


APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DECLARATÓRIA C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. (...) Tratando-se de transferência de propriedade de bem móvel, esta se perfectibiliza com a tradição do bem (art. 1267, cc). Comprovada a alienação do veículo, a falta de comunicação ao órgão de trânsito, na forma do artigo 134 do CTB, não gera, em princípio, responsabilidade do antigo proprietário. Antigo proprietário do veículo não pode ser responsabilizado pelos débitos e multas de trânsito posteriores à alienação do bem, ainda que não tenha sido comunicada a transferência ao DETRAN. Precedentes do STJ e deste Tribunal. (...) APELAÇÃO DO RÉU SÉRGIO DESPROVIDA. APELAÇÃO DO DETRAN PARCIALMENTE PROVIDA.(Apelação Cível, Nº 50000764720128210069, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em: 11-12-2023).


AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA. TRANSFERÊNCIA DA PROPRIEDADE DO VEÍCULO EM MOMENTO ANTERIOR À IMPUTAÇÃO DAS MULTAS DE TRÂNSITO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA DEFERIDA. (...) Havendo prova da transmissão da propriedade do veículo, que no caso dos autos se deu por meio da tradição do bem móvel, na forma do artigo 1.267 do Código Civil, deve ser mitigada a regra do artigo 134 do Código de Trânsito Brasileiro, que estabelece a responsabilidade solidária do antigo proprietário pelas multas posteriormente aplicadas, caso não comunicada a alienação ao órgão de trânsito, sendo desarrazoado que a inobservância de mera formalidade administrativa tenha tal alcance. (...)  AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.(Agravo de Instrumento, Nº 52942070920238217000, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lúcia de Fátima Cerveira, Julgado em: 29-11-2023).


De toda sorte, é possível afastar a pontuação da infração na CNH do vendedor, uma vez que esta penalidade é de caráter personalíssimo, ou seja, não pode ser imputada a quem não conduzia o veículo quando da aplicação da multa.

Na dúvida, para evitar dores de cabeça e discussões judiciais, ao alienar o veículo, o vendedor deverá comunicar a transferência de propriedade ao DETRAN, providência esta que é de sua responsabilidade, sob pena de assumir as consequências de responder por eventuais infrações futuras. 


sábado, 20 de janeiro de 2024

Bullying e Outros Crimes Contra Crianças e Adolescentes

Agora é lei: praticar bullying e cyberbullying passou a ser crime. 

A Lei n.º 14.811/24 tipificou a intimidação sistemática presencial e virtual através da inclusão do artigo 146-A e seu parágrafo único ao Código Penal:

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena - multa, se a conduta não constituir crime mais grave. 

Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:  

Pena - reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave. 

Referida norma legal também passou a prever um acréscimo de pena em caso de homicídio praticado contra menor de 14 (quatorze) anos em instituição de ensino, bem como em casos de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou automutilação:

Art. 121. Matar alguém: (...)

§ 2º-B. A pena do homicídio contra menor de 14 (quatorze) anos é aumentada de:

III - 2/3 (dois terços) se o crime for praticado em instituição de educação básica pública ou privada. 

...

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça:  (...)

§ 5º Aplica-se a pena em dobro se o autor é líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes é responsável.   

No mesmo sentido, foi alterado o § 1.º do artigo 240 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90), com a inclusão dos incisos I e II, a saber:

Art. 240.  Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem:

I - agencia, facilita, recruta, coage ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena;     

II - exibe, transmite, auxilia ou facilita a exibição ou transmissão, em tempo real, pela internet, por aplicativos, por meio de dispositivo informático ou qualquer meio ou ambiente digital, de cena de sexo explícito ou pornográfica com a participação de criança ou adolescente.   

Por seu turno, o artigo 1.º da Lei de Crimes Hediondos (Lei n.º 8.072/90) passou a contar com os seguintes incisos:

Art. 1.º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: (...)

X - induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação realizados por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitidos em tempo real (art. 122, caput e § 4º);  

XI - sequestro e cárcere privado cometido contra menor de 18 (dezoito) anos (art. 148, § 1º, inciso IV);  

XII - tráfico de pessoas cometido contra criança ou adolescente (art. 149-A, caput, incisos I a V, e § 1º, inciso II).  

Importante dizer que os crimes hediondos (assim como a prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas e terrorismo) são insuscetíveis de anistia, graça e indulto, tampouco de fiança, cuja pena é cumprida inicialmente em regime fechado.

Assim, temos que a Lei n.º 14.811/24, ao instituir uma Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente, tem como objetivo coibir a prática de violência física, moral e psicológica, ampliando a punição de crimes cometidos contra o público infantojuvenil.

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Estatuto da Criança e do Adolescente - 30 Anos

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quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Golpe do Falso Aluguel na Praia

Verão. Férias. Calor. PRAIA. Essa época do ano é aguardada por muitas pessoas que durante o ano inteiro idealizam sua viagem para aproveitar sol & mar & areia.

Todavia, para alguns o sonho se torna pesadelo quando, ao alugarem uma casa ou apartamento de veraneio, acabam caindo em golpes praticados por pessoas mal intencionadas que, apropriando-se de fotos e informações de imóveis que efetivamente estão disponíveis para locação, se fazem passar pelos proprietários e pior: aplicam o golpe do aluguel do mesmo imóvel para diversas pessoas. 

Portanto, para não ter frustrada sua temporada de férias, tampouco perder dinheiro, algumas medidas de proteção e cautela precisam ser tomadas: 

1. Sempre buscar um corretor de imóveis/ imobiliária confiáveis e conhecidos naquela localidade para intermediar a locação.

2. Em negócios realizados através de anúncios veiculados na Internet, verificar todos os dados do imóvel (proprietário, endereço, características/ ambientes da casa), se o valor cobrado é condizente com o de mercado na época (no verão os preços costumam subir) e as fotos postadas (analisar quantidade e qualidade das mesmas), de modo a checar se ele realmente existe. Em tempos de Google Maps, importante pesquisar o endereço no site e ver se o imóvel que aparece é o mesmo.

3. De preferência, ir até o imóvel pessoalmente antes de alugá-lo.

4. Quando fechar o negócio, é importante assinar um contrato de locação, onde constarão os dados do locador e locatário, bem como todas as informações pertinentes ao imóvel, tempo de permanência e valores/ forma de pagamento.  

5. Ao efetuar o depósito de quantias, exigir recibo do proprietário do imóvel e/ou realizar PIX diretamente a este, para evitar o risco de pagamento errôneo.

Caso a pessoa tenha sido vítima de golpe, a primeira medida a ser tomada é realizar um boletim de ocorrência (direto na delegacia de polícia ou virtualmente). Para tanto, devem ser apresentadas todas as provas existentes da suposta locação, como o nome e o telefone da pessoa com quem contratou, indicação da página na Internet e prints dos falsos anúncios nas redes sociais, conversas em WhatsApp, fotos do imóvel, comprovantes de pagamento, ou seja, tudo que possa auxiliar na investigação do crime de estelionato para fins de responsabilizar os criminosos.

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