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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

AME, Zolgensma e SUS

Há dois anos, escrevemos aqui no ::BLoG:: sobre a AME - Uma Corrida Contra o Tempo, doença muscular neurodegenerativa evolutiva. À época, apresentamos dois bebês gaúchos, Enzo e Emanuel, que aguardavam sua preciosa dose de Zolgensma, tratamento de terapia gênica mais indicado para a enfermidade, que atingia, à época, o astronômico valor de 12 milhões de reais. O alto custo do medicamento se dá em razão de ser "medicamento órfão" que atua corrigindo o defeito na base, ou seja, insere o material genético modificado no organismo da criança.

Embora já estivesse devidamente registrado perante a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desde agosto de 2020, somente nesta semana o Zolgensma (cujo nome nome científico é onasemnogeno abeparvoveque) foi incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS) pelo Ministério da Saúde.

Conforme expressa recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Novas Tecnologias em Saúde (CONITEC), a medicação deverá ser aplicada sob os seguintes critérios/ exigências: somente em bebês de até 06 (seis) meses de idade e que estejam tratando os efeitos da atrofia muscular espinhal sem a necessidade de ventilação invasiva por mais de 16 (dezesseis) horas diárias.

Ocorre que, em mais da metade dos casos, a AME tipo 1 (forma mais grave da doença) é diagnosticada após os 06 (seis) meses de idade e, em crianças de tão tenra idade, com fraqueza muscular severa, a ventilação por meio de tubo endotraqueal (naso ou orotraqueal) ou cânula de traqueostomia é utilizada em extensos períodos de tempo, o que, pela recomendação da CONITEC, inviabilizaria a concessão do Zolgensma.

É muito difícil que se tenha o diagnóstico precoce dessa doença rara, eis que os sintomas por vezes demoram a aparecer, excluindo a possibilidade de aplicação da terapia gênica. Seguem alguns importantes sinais a serem avaliados, conforme pediatras: o bebê não firma a cabeça; o corpo é mais mole (hipotonia); movimenta menos as pernas do que os braços; tem uma respiração que movimenta mais o abdômen do que o tórax; apresenta tremor na língua e incapacidade de engolir.

O medicamento será disponibilizado na rede pública de saúde em até 180 (cento e oitenta) dias, prazo necessário para os procedimentos de compra, distribuição e elaboração do protocolo clínico para uso. 

Ainda, em razão de expressa previsão legal contida no § 10 do artigo 10 da Lei n.º 9.656/98, incluído pela Lei n.º 14.307/2022, o tratamento também deverá ser incluído no Rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) entre as terapias cobertas pelos planos, eis que a nova legislação estabelece que "as tecnologias avaliadas e recomendadas positivamente pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), instituída pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011, cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, serão incluídas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar no prazo de até 60 (sessenta) dias".


quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Atuação Ampliada dos Fisioterapeutas

Recentemente, por ocasião do julgamento de Embargos de Declaração no Recurso Especial n.º 1.592.450, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que diagnosticar doenças e prescrever tratamentos não se trata de atividade privativa do médico, ampliando a área de atuação dos Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais. 

Assim, é possibilitado a estes profissionais solicitar laudos e exames, receber demanda espontânea, elaborar diagnóstico específico de sua área de atuação, bem como prescrever programas de tratamento.

O debate na Corte deu-se em razão de recursos interpostos pelo Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (CREMERS) e Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS), questionando suposta invasão de suas atribuições privativas, por entenderem as referidas entidades que as funções do fisioterapeuta e terapeuta ocupacional deveriam limitar-se à execução das técnicas e dos métodos prescritos pelos médicos, tese esta que não foi acatada pelo STJ.

Segue a ementa do acórdão:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE DE LEGALIDADE. DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE NORMA INFRALEGAL. POSSIBILIDADE. RESOLUÇÕES NORMATIVAS. CONSELHO DE FISIOTERAPIA E TERAPIA OCUPACIONAL. AUTORIZAÇÃO. ATO RESERVADO A MÉDICOS. IMPOSSIBILIDADE.

1. Embora não caiba a este Tribunal examinar o pedido de inconstitucionalidade de norma em face da Constituição, é possível promover o exame da legalidade das resoluções normativas que eventualmente tenham contrariado o Decreto-lei n. 938/1969.

2. No caso, como o pedido da inicial foi deduzido de ambas as maneiras (declaração de ilegalidade e inconstitucionalidade), a ação civil pública é viável, ao menos em relação ao primeiro pleito, sendo os autores partes legítimas para deduzi-lo.

3. O exercício das profissões de fisioterapeuta e terapeuta ocupacional se desenvolve de acordo com os parâmetros dispostos Decreto-lei n. 938/1969 (art. 1º), que, em seus arts. 3º e 4º, expressamente reservou aos profissionais a atividade de executar métodos e técnicas fisioterápicos, terapêuticos e recreacionais.

4. Não há, na norma de caráter primário, autorização para que os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais desempenhem atividades como as de receber demanda espontânea, realizar diagnóstico, prescrever ou realizar exames sem assistência médica, ordenar tratamento e dar alta terapêutica, atividades reservadas aos médicos.

5. O STF, no julgamento da Representação 1.056/DF, considerou constitucionais os arts. 3º e 4º do Decreto-lei n. 938/1969 e o art. 12 da Lei n. 6.316/1975 e bem delimitou as atividades do fisioterapeuta e do terapeuta ocupacional: a) ao médico cabe a tarefa de diagnosticar, prescrever tratamentos, avaliar resultados; b) ao fisioterapeuta e ao terapeuta ocupacional, diferentemente, cabe a execução das técnicas e métodos prescritos (STJ, REsp 693.454/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, julgado em 03/11/2005, DJ 14/11/2005, p. 267).

6. Hipótese em que a interpretação sistemática entre os arts. 1º, 3º e 4º do Decreto-lei n. 938/1969 e os arts. 1º, 2º, parágrafo único, II, 4º, X, XI e XIII e §§1º e 7º, da Lei n. 12.842/2013 reforça as conclusões antes adotadas por esta Corte e pelo Supremo.

7. Deve ser mantida a possibilidade da prática da acupuntura, quiropraxia, osteopatia e fisioterapia e terapia ocupacional do trabalho pelos fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, porque, quanto a elas, não há comando secundário em abstrato que, pela só existência, vulnere os preceitos normativos primários que disciplinam as atividades de fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, ou mesmo médicos.

8. Recurso especial parcialmente provido.

(REsp n. 1.592.450/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 21/6/2022, DJe de 30/6/2022.). Grifos nossos.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Companhias Aéreas e Transporte de Pets

Já nos debruçamos sobre a temática animais de estimação aqui no ::BLoG::, ao tratar sobre Pet Shop e o Dever de Reparação (clique no link para ler o artigo). Como sabido, nos últimos anos aumentou (e muito) a população de pets no Brasil, especialmente no período da pandemia de COVID-19. Isso porque, dado o distanciamento social operado, muitas pessoas adotaram gatos e cachorros para lhes fazerem companhia.

Quem é mãe/ pai de pet acaba estabelecendo uma relação de amor incondicional com o filho peludo. Assim, além dos cuidados com alimentação, saúde, higiene e bem-estar dos animais, estes também viajam com o(a) tutor(a) solo ou família de tutores, seja de carro, seja de avião em férias ou mudança de residência.

Recentemente, tem sido veiculados vários relatos/ demandas judiciais envolvendo maus tratos e/ou negligência das companhias aéreas quando do transporte dos pets. Em que pese muitas vezes sejam carregados no compartimento de carga/ porão da aeronave, animais não são bagagens, devendo ser tratados e cuidados como seres vivos que são: é necessário alimentá-los, hidratá-los, oferecer (e manter) um ambiente com temperatura/ ventilação adequada, bem como buscar a redução/ eliminação do estresse e ansiedade ocasionados pela própria viagem (tendo em vista que se trata de situação que foge da normalidade para os bichinhos).

Embora a discussão já exista, não há no Brasil regulamentação específica quanto ao transporte de pets, nem em lei, nem na ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil). Para que sejam levados na cabine de passageiros do avião, junto a seus pais/ tutores, os animais + a bolsa/ caixa de transporte devem pesar, no máximo, entre 7 a 10 kg (a depender da companhia). Importante dizer que há regras específicas quanto ao tipo, características e dimensões dessas bolsas/ caixas que acondicionam os pets. No mesmo sentido, os tutores deverão apresentar atestado de saúde emitido por veterinário com informações completas do animal de estimação, bem como devem os mesmos estar com a vacinação (antirrábica) em dia.

Independentemente de onde os pets estejam alojados durante o voo - seja na cabine, seja no porão da aeronave -, é obrigação das companhias aéreas proporcionar comodidade e segurança aos bichinhos, sob pena de responsabilização por danos morais e materiais decorrentes da inobservância/ violação dessas regras.

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Leia mais em:

Animais de estimação em aviões: dicas e regras para o transporte de cães e gatos


terça-feira, 8 de novembro de 2022

Divórcio: Direito à Moradia x Partilha do Imóvel

Em recente julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça  (REsp n.º 1.852.807), restou estabelecido que, não obstante um dos ex-companheiros siga morando com os filhos no imóvel que era do casal, aquele que saiu da residência possui o direito à venda do bem comum e consequente extinção do condomínio (aqui, condomínio significa que o imóvel tem mais de um proprietário).

No caso, a Corte possibilitou ao autor que vendesse o bem adquirido com a ex-esposa que, na separação, ficou responsável pelo pagamento das prestações do financiamento do imóvel. Assim, restou decidido que o produto da alienação judicial seria dividido entre os dois de forma igualitária.

Importante questão debatida no recurso diz respeito à prevalência (ou não) do direito à moradia, previsto no artigo 6.º da Constituição Federal de 1988 (direitos sociais). Conforme arguido no voto condutor do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, não se mostra válido o argumento da ex-companheira de que, por receber somente 50% (cinquenta por cento) do bem, não lograria êxito em adquirir outro do mesmo padrão contando somente com os recursos oriundos da venda, o que lhe acarretaria prejuízo. Isso porque, no entendimento do Relator, sempre que há uma ruptura no casamento/união estável o padrão de vida tende a ser naturalmente diminuído.

Ademais, é direito do condômino extinguir o condomínio sobre o imóvel e exigir a sua divisão qualquer momento, nos termos do artigo 1.320 do Código Civil:

Art. 1.320. A todo tempo será lícito ao condômino exigir a divisão da coisa comum, respondendo o quinhão de cada um pela sua parte nas despesas da divisão.

A lei possibilita a cobrança de aluguel daquele que segue residindo no imóvel, vide artigo 1.319 do CC. Todavia, no caso julgado pelo STJ, foi acordado entre as partes, na separação, que não seriam cobrados locatícios da mulher até a venda do bem.

Art. 1.319. Cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo dano que lhe causou.


segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Creche e pré-escola: Direito Constitucional

1. A educação básica em todas as suas fases - educação infantil, ensino fundamental e ensino médio - constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata. 2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo. 3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica.

De acordo com a tese acima fixada pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento, em sede de repercussão geral, do Recurso Extraordinário n.º 1.008.166, de relatoria do Ministro Luiz Fux, o Estado, através dos Municípios, possui o dever constitucional de assegurar vagas em creche e pré-escola a todas as crianças de zero a 05 (cinco) anos de idade. Em não sendo disponibilizadas, os pais podem reivindicar as vagas perante o Poder Judiciário, através de ações judiciais individuais - trata-se, inclusive, de direito líquido e certo.

Essa decisão, que suplanta todas as teorias contrárias que vinham sendo opostas (reserva do possível, existência de lista de espera, ausência de previsão orçamentária) garante a aplicabilidade direta e imediata do direito constitucional previsto nos artigos 7.º, inciso XXV, e 208, IV, da Lei Maior, que assim dispõem:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas; 

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

(...)

IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;  

Há de se mencionar ainda que, além de garantir o direito sagrado à educação, a decisão vinculante da Corte Suprema visa também assegurar às mães a tranquilidade de exercer seu direito ao trabalho (seja para ingressar, seja para retornar), de modo a que possa conciliar seus projetos de vida pessoal, familiar a laboral. Importante mencionar que a oferta de educação básica deverá ser próxima à residência da criança. 


terça-feira, 27 de setembro de 2022

Vazamento de Dados do Prontuário Médico

O prontuário médico - que possui caráter científico, legal e sigiloso - é um documento que contém todo o histórico de saúde e tratamento do paciente, ou seja, onde se encontram registradas todas as informações relacionadas àquele indivíduo. 

Conforme informações contidas no site do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul - CREMERS, prontuário médico é o documento elaborado pelo médico com os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina. Todo registro de saúde, inclusive em emergências, é considerado prontuário médico. Ele serve para facilitar a comunicação entre os diferentes profissionais da saúde, assegurar a assistência ao paciente e a continuidade do atendimento e do tratamento, tanto durante uma internação como no período entre as consultas de ambulatório. É utilizado como documento probatório para fins previdenciários, bem como para qualquer demanda, seja judiciária ou ética.

Nos termos do artigo 88 do Código de Ética Médica, o médico tem o dever de possibilitar o acesso do paciente (ou, em caso de impossibilidade, de seu representante legal) a seu prontuário, fornecendo-lhe cópia sempre que solicitado, além de dar todas as explicações necessárias para a sua exata compreensão. exceto quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros. 

Isso porque os documentos médicos (prontuários, atestados, declarações, boletins, solicitações e resultados de exames, relatórios e laudos periciais elaborados em processos judiciais) pertencem ao paciente, estando sob a guarda do profissional médico ou da instituição de saúde que o assiste, seja pública ou privada. 

A quebra de sigilo atribuída ao prontuário médico somente poderá ser efetuada nas seguintes situações: a) autorização expressa do paciente; b) existência de justo motivo; c) dever legal; d) decisão judicial; e) requisição dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina. 

Com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) - Lei n.º 13.709/18, a saúde restou classificada como dado pessoal sensível, conforme segue: 

Art. 5.º Para os fins desta Lei, considera-se:

(...)

II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;

Assim, consoante a nova lei, há de se ter especial cuidado por ocasião da entrega/ envio dos documentos médicos aos pacientes (cópia física, pen drive, e-mail), de modo a resguardar o dever de sigilo e evitar problemas de segurança, respeitados os direitos e garantias constitucionais dos titulares dos dados.

Recentemente, foi noticiado o vazamento de informações do prontuário médico de uma famosa atriz brasileira, a qual foi vítima da insensibilidade e mau-caratismo de uma profissional de saúde vinculada à instituição de saúde na qual estava internada. Vítima de estupro, a jovem manteve a gestação e, por ocasião do parto, entendeu por entregar a criança à adoção logo após o nascimento. Por motivos que fogem ao nosso entendimento, a enfermeira repassou essa notícia a um colunista conhecido no mundo sensacionalista que não tardou em publicar a fofoca maldosa nas redes sociais.

Trata-se de uma crueldade sem tamanho a exposição de um ser humano em um momento de tamanha vulnerabilidade. Além de ter que lidar com a incomensurável dor suportada pela violência contra si cometida, a paciente se viu exposta na mídia, sendo julgada e condenada pelo tribunal da internet. Importante lembrar que, em caso de gravidez decorrente de abuso sexual, a mulher possui o direito legal à interrupção da gestação a qualquer momento, ou de entregar o bebê à adoção. Independentemente da decisão tomada, ou das crenças e opiniões subjetivas de cada um, cabe a todos, sem distinção, acolher e respeitar a escolha individual da mulher

Para além de uma grave falha na segurança dos dados dos pacientes, sobre os quais as instituições de saúde possuem inequívoco dever de sigilo e proteção (assim como todos os trabalhadores que lá atuam, em observância ao necessário regimento interno/ código de conduta a ser estabelecido), a exposição do paciente trata-se de crime, além da possibilidade de ajuizamento de ação indenizatória pelos danos morais causados. Quanto à "profissional" de saúde, esta poderá ser ré em ação criminal, ser despedida com justa causa do trabalho, além de sofrer processo ético perante seu conselho de classe, sendo possível a perda de seu direito de exercer a profissão.  

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Pirâmides Financeiras

De tempos em tempos, surge um grupo organizado que, por meio de uma estrutura montada com o intuito de ganhar dinheiro, acaba lesando dezenas (ou centenas) de incautos. Conhecida popularmente como pirâmide financeira, essa prática beneficia unicamente os seus idealizadores - empresários que estão no topo da "cadeia alimentar" e que efetivamente recebem numerário, ostentando contas bancárias milionárias, viagens paradisíacas, mansões de luxo e carros importados.

A ideia é simples: seduzidos pela promessa de lucro rápido e fácil, os inocentes indivíduos acreditam tratar-se de uma oportunidade única de ganhar muito dinheiro. Pura ilusão: os recrutados apenas despendem valores, seja investindo para poder fazer parte do "seleto" grupo de winners; angariando novos ingênuos participantes, ou pela obrigatória compra de produtos vinculados. Pura fraude: em dado momento, o negócio se mostra absolutamente insustentável. E assim a estrutura entra em colapso, arruinando os sonhos e projetos da grande maioria dos participantes.

Por ocasião do julgamento do conflito de competência - CC n.º 146.153 pelo Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca assim explicitou:

"Como, a partir de determinado momento, mostra-se inviável manter o ingresso de investidores em proporção suficiente para que suas novas contribuições arquem com os lucros prometidos àqueles que ingressaram previamente, o sistema não tem como se alimentar de recursos e entra em colapso, prejudicando aqueles que aderiram por último, uma vez que não chegam a recuperar nem mesmo o montante investido". 

Há casos de recrutados que perdem casa, carro, poupança de toda uma vida para participar desse mal disfarçado engodo. Além dos valores irrecuperáveis, perdem a saúde, o casamento, a confiança nas pessoas, a vontade de viver. A boa-fé da grande maioria de indivíduos que investem tempo e dinheiro no sistema não é acompanhada por aqueles que estão gerindo a organização criminosa. 

A captação de recursos financeiros através de esquema de pirâmide é considerada crime contra a economia popular, nos termos do artigo 2.º, inciso IX, da Lei n.º 1.521/51 -  IX - obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ("bola de neve", "cadeias", "pichardismo" e quaisquer outros equivalentes). A promessa de rendimentos completamente fora da realidade (lucros de 50, 60% acima da média do mercado, do valor investido) é um  indicador evidente de que há algo muito errado no esquema proposto. 

Mas há outros sinais a serem observados:


sábado, 10 de setembro de 2022

Sexologia Forense

Dentre os diversos ramos da Medicina Legal, temos o da sexologia forense, que trata sobre as questões relacionadas ao comportamento sexual e suas implicações no âmbito jurídico quando as condutas praticadas configuram crime. Esta área também está conectada à psicologia e psiquiatria forense, no momento em que o perfil psicológico e/ou psiquiátrico do infrator sexual também passa a ser objeto de análise, com o intuito de esclarecer e, de certa forma, tentar compreender o comportamento desviante por ele adotado. 

A sexologia forense se divide em 03 (três) grandes grupos de estudo: 

1) Erotologia forense, que são as práticas libidinosas que extrapolam a sexualidade normal e adentram a seara da criminalidade, por atentarem contra a dignidade e liberdade sexual (estupro, violação sexual mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual, estupro de vulnerável, corrupção de menores, dentre outros); 

2) Obstetrícia forense, que analisa os aspectos médico-legais relacionados à fecundação, gravidez, parto e puerpério, além dos crimes de aborto e infanticídio; 

3) Himenologia forense, que analisa as questões relacionadas ao casamento, no que tange a impedimentos matrimoniais absolutos ou relativos (relação de parentesco, menoridade nupcial, moléstia grave, impotência masculina, etc.). 

O exame técnico realizado por peritos criminais e legistas nos casos acima mencionados tem por objetivo auxiliar/ embasar a investigação e, com base na prova da materialidade do delito, produzida através da análise dos vestígios e evidências deixados pelo ato sexual e/ou violência praticada, identificar o autor do delito e determinar o tipo penal cometido para fins de aplicação da sanção cabível, de acordo com a legislação pátria. Como exemplos de mostras/ provas podemos citar a ruptura do hímen, presença de espermatozóides na vagina ou ânus, gravidez, dor, hemorragia, lacerações, contaminação por DST, escoriações e equimoses, saliva ou manchas de sêmen nas roupas, lesões que evidenciem manobras abortivas e existência de respiração extra-uterina, no caso de infanticídio. 

Importante consignar que os delitos sexuais raramente deixam testemunhas, por serem cometidos na clandestinidade. Razão pela qual a palavra da vítima assume extrema relevância e elevado valor probatório, sempre que o relato for coerente e seguro, e estiver em consonância com os demais elementos de prova constantes no processo, como o laudo pericial firmado pelo Expert atestando a existência da crime. 

Leia também: Medicina Legal e Perícias Forenses

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Indenização devida a Profissional da Saúde em Razão da Pandemia

Em vigor desde março de 2021, recentemente a Lei n.º 14.128/21 - que trata sobre o pagamento de indenização por incapacidade ou morte de profissional da saúde em razão da pandemia - foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Nos termos do voto da Ministra Relatora, Carmen Lúcia, a lei abrange todos os profissionais de saúde, dos setores público e privado, de todos os entes da Federação.

Referida norma ingressou no ordenamento pátrio com a finalidade de promover a

compensação financeira a ser paga pela União aos profissionais e trabalhadores de saúde que, durante o período de emergência de saúde pública de importância nacional decorrente da disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2), por terem trabalhado no atendimento direto a pacientes acometidos pela Covid-19, ou realizado visitas domiciliares em determinado período de tempo, no caso de agentes comunitários de saúde ou de combate a endemias, tornarem-se permanentemente incapacitados para o trabalho, ou ao seu cônjuge ou companheiro, aos seus dependentes e aos seus herdeiros necessários, em caso de óbito.

Pelo que se lê do parágrafo único do artigo 1.º da norma, considera-se:

I - profissional ou trabalhador da saúde:

a) aqueles cujas profissões, de nível superior, são reconhecidas pelo Conselho Nacional de Saúde, além de fisioterapeutas, nutricionistas, assistentes sociais e profissionais que trabalham com testagem nos laboratórios de análises clínicas;

b) aqueles cujas profissões, de nível técnico ou auxiliar, são vinculadas às áreas de saúde, incluindo os profissionais que trabalham com testagem nos laboratórios de análises clínicas;

c) os agentes comunitários de saúde e de combate a endemias;

d) aqueles que, mesmo não exercendo atividades-fim nas áreas de saúde, auxiliam ou prestam serviço de apoio presencialmente nos estabelecimentos de saúde para a consecução daquelas atividades, no desempenho de atribuições em serviços administrativos, de copa, de lavanderia, de limpeza, de segurança e de condução de ambulâncias, entre outros, além dos trabalhadores dos necrotérios e dos coveiros; e

e) aqueles cujas profissões, de nível superior, médio e fundamental, são reconhecidas pelo Conselho Nacional de Assistência Social, que atuam no Sistema Único de Assistência Social;

II - dependentes: aqueles assim definidos pelo art. 16 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991;


Por seu turno, a Lei que trata sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social assim dispõe:

Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;    

II - os pais;

III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;  


Para ter direito à compensação financeira (cujo caráter é eminentemente indenizatório), o postulante deverá apresentar diagnóstico de Covid-19 comprovado mediante laudos de exames laboratoriais ou laudo médico que ateste quadro clínico compatível com a Covid-19, e estará sujeito à avaliação de perícia médica oficial. Observar-se-á, ainda, o nexo temporal entre a data de início da doença e a ocorrência da incapacidade permanente para o trabalho ou óbito. 

Importa dizer que a presença de comorbidades não afasta o direito ao recebimento da compensação financeira de que trata a Lei n.º 14.128/21, bem como o fato de que esta indenização por incapacidade ou morte não prejudica o direito a perceber benefícios previdenciários ou assistenciais previstos em lei. 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Assédio Sexual no Ambiente de Trabalho

Já tratamos aqui no ::BLoG:: sobre assédio moral (clique nos links abaixo para ler), conduta abusiva em regra praticada pelo(a) superior(a) hierárquico(a) que, de forma repetitiva e prolongada no tempo, ofende e atinge a dignidade do(a) empregado(a), causando-lhe intenso sofrimento físico, psicológico e/ou emocional.

Rescisão Indireta do Contrato de Trabalho

Rescisão Indireta do Contrato de Trabalho II

Assédio Moral

O Alto Preço do Assédio Moral

Assédio Moral a Funcionário: Quando o Chefe é Condenado a Ressarcir a Empresa

Por seu turno, o assédio sexual é o constrangimento - através de palavras, cantadas ou piadas ou por meio de gestos obscenos e/ou toques indevidos - causado pelo(a) superior(a) hierárquico(a) ao(a) empregado(a) no ambiente de trabalho com conotação lasciva, utilizando-se de sua posição/ influência na empresa (abuso de poder) para formular propostas indecentes com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual. 

Pode ocorrer tanto por meio de chantagem, em que a resposta da pessoa assediada irá determinar se a sua situação no ambiente laboral será favorável ou não (promoção ou rebaixamento de função, aumento salarial), quanto por intimidação, em que eventual negativa da pessoa transformará a empresa em um lugar hostil e/ou humilhante para ela.

No Brasil, o assédio sexual é considerado crime, conforme previsão expressa do artigo 216-A do Código Penal:

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

§ 2.º  A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos.

Embora a produção de provas seja difícil - eis que o assédio sexual geralmente não é praticado perante terceiros -, a pessoa assediada pode utilizar-se de prints de conversas em aplicativos de mensagens (formalizados em ata notarial), gravações telefônicas, cartas e bilhetes, e relatos de testemunhas (quando houver) para comprovar os fatos.

A denúncia do assédio sexual - além do competente registro de boletim de ocorrência na delegacia mais próxima - poderá ser realizada pela vítima junto ao setor de recursos humanos da empresa, perante a chefia imediata (gestor, coordenador), ao sindicato da categoria profissional a que pertence o assediado, ao Ministério Público ou ainda perante a Justiça do Trabalho.

Isso porque a CLT prevê a possibilidade de rescisão indireta do contrato de trabalho em razão da incidência das alíneas do artigo 483, a saber:

Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: (...)

b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo; (...)

e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama;

A extinção do vínculo por culpa grave do empregador garante o recebimento de todas as verbas trabalhistas pelo empregado como se despedida sem justa causa fosse (aviso prévio, FGTS com multa de 40%, seguro desemprego).

Temos ainda a possibilidade de recebimento de uma indenização a título de danos morais, dentro da reclamatória trabalhista, com base no Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 

O assédio sexual viola a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais da vítima, previstos no artigo 5.º da Constituição Federal de 1988, tais como a liberdade, a intimidade, a vida privada, a honra, a igualdade de tratamento, além daqueles previstos em outros artigos do mesmo diploma legal, relativamente ao valor social do trabalho e o direito ao meio ambiente de trabalho sadio e seguro. 

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Dia do(a) Advogado(a)

"Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem."

RUY BARBOSA - Oração aos Moços.


domingo, 7 de agosto de 2022

Medicina Legal e Perícias Forenses

A Medicina Legal, na definição do professor Genival França, “é a medicina a serviço das ciências jurídicas e sociais”. 

Em outras palavras, podemos dizer que é o conhecimento técnico-médico que, em um processo judicial, fornece subsídios para a compreensão dos fatos e descobrimento da verdade, auxiliando o Magistrado a fundamentar suas decisões. Muito embora o Juiz não esteja adstrito ao laudo pericial, em razão do princípio do livre convencimento motivado (vide artigo 155 do CPP), é sabido que a prova científica contribui imensamente para a elucidação de questões que demandam uma análise mais rigorosa e precisa, a qual deverá ser ponderada e estar em consonância com as demais provas produzidas no processo. 

A realização de prova pericial pode se dar nas mais diversas áreas do saber. No tocante à Medicina Legal, o perito médico-legal ou legista, com base em seus conhecimentos técnico-científicos, poderá atuar nas questões de identidade ou processos de identificação do ser humano, através da análise de características como raça, sexo, idade, estatura, tipo sanguíneo e particularidades, como arcada dentária, fraturas consolidadas, tatuagens e cicatrizes (antropologia forense); diagnosticar estados emocionais alterados (psicologia), doenças mentais, sociopatias e psicopatias (psiquiatria); evidenciar doenças profissionais e acidentes de trabalho; detectar a presença de álcool, entorpecentes, substâncias químicas aptas a causar intoxicação ou envenenamento; determinar a existência de gravidez, parto e puerpério, prática de aborto ou infanticídio, crimes sexuais; constatar a ocorrência de lesões corporais ou homicídio; proceder à necropsia, exumação; etc. 

Na esfera criminal, a perícia forense é extremamente importante para o esclarecimento de questões envolvendo um homicídio, por exemplo, eis que analisa o local do crime, modo de execução, meios empregados, tipo de lesão causada, objeto utilizado, muitas vezes chegando até a motivação do crime e ao ofensor. Por isso a importância de se isolar e preservar a integridade do local do fato, para que se proceda a uma correta análise dos vestígios e indícios deixados na cena do crime. São elementos probatórios as impressões digitais, pelo, cabelo, sangue, saliva, sêmen (e demais fluidos corporais), droga, bebida, projetil de arma de fogo, e outros. 

Assim, temos que a prova técnico-pericial possui um papel fundamental (diria até imprescindível, em muitos casos) para auxiliar as autoridades na investigação e resolução de crimes, tanto na fase do inquérito policial quanto na seara judicial, sempre visando alcançar o objetivo maior: desvendar o caso e aplicar a Justiça.

terça-feira, 26 de julho de 2022

Cultivo de Cannabis para fins Medicinais

Em julgamento inédito sobre o tema, recentemente a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu salvo-condutos, através de habeas corpus preventivo, permitindo o plantio de cannabis sativa para fins de extração de seu princípio ativo (óleo de maconha) para uso próprio medicinal, sendo que os beneficiados pela decisão necessitam portar laudo e receituário (prescrição médica) para fazer uso do óleo de canabidiol, de modo a que não sofram persecução penal.

O referido salvo-conduto tem por finalidade evitar que as pessoas que cultivam e transportem a cannabis para fins medicinais corram o risco de sofrerem constrangimento ilegal/ serem tolhidas de sua liberdade de locomoção, bem como de serem investigadas, denunciadas, presas, julgadas e condenadas pelo crime de tráfico previsto no artigo 33 da Lei n.º 11.343/2006 (Antidrogas), eis que a finalidade do cultivo da planta psicotrópica visa assegurar o DIREITO À SAÚDE, constitucionalmente previsto no artigo 196 da Carta Magna: 

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Os casos julgados pelo STJ (REsp n.º 1.972.092 e RHC n. 147.169) se referem a pessoa portadora de transtorno de ansiedade e insônia; pessoa com sequelas do tratamento de câncer; e pessoa com insônia, ansiedade generalizada e outras enfermidades. Em que pese a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) tenha deferido autorizações em caráter excepcional para importação do canabidiol, o custo elevado do produto faz com que os pacientes que dele necessitam acabem buscando a cultivo caseiro e produção artesanal do óleo da planta medicinal para manter/ prosseguir com o tratamento de suas doenças.  

Importante ressaltar que o cultivo de maconha unicamente para fins recreativos é crime previsto na Lei de Drogas, por entender o legislador tratar-se de substância entorpecente que representa risco de lesão à saúde pública, seja para consumo pessoal, seja para entrega a terceiros com o objetivo de lucro.

Em que pese o preconceito religioso-moralista que ainda circunda o tema, os benefícios do óleo de maconha são inegáveis e inequivocamente demonstrados para o tratamento das mais diversas doenças, representando expressivas melhoras na condição de saúde dos pacientes, inclusive dos portadores de Alzheimer.

Segue ementa de um dos julgados, de Relatoria do Ministro Sebastião Reis:


RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE.

1. O Direito Penal é conformado pelo princípio da intervenção mínima e seus consectários, a fragmentariedade e a subsidiariedade.

Passando pelo legislador e chegando ao aplicador, o Direito Penal, por ser o ramo do direito de mais gravosa sanção pelo descumprimento de suas normas, deve ser ultima ratio. Somente em caso de ineficiência de outros ramos do direito em tutelar os bens jurídicos é que o legislador deve lançar mão do aparato penal. Não é qualquer lesão a um determinado bem jurídico que deve ser objeto de criminalização, mas apenas as lesões relevantes, gravosas, de impacto para a sociedade.

2. A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares.

3. A omissão legislativa em não regulamentar o plantio para fins medicinais não representa "mera opção do Poder Legislativo" (ou órgão estatal competente) em não regulamentar a matéria, que passa ao largo de consequências jurídicas. O Estado possui o dever de observar as prescrições constitucionais e legais, sendo exigível atuações concretas na sociedade.

4. O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina.

5. Vislumbro flagrante ilegalidade na instauração de persecução penal de quem, possuindo prescrição médica devidamente circunstanciada, autorização de importação da ANVISA e expertise para produção, comprovada por certificado de curso ministrado por associação, cultiva cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio.

6. Recurso em habeas corpus provido para conceder salvo-conduto a Guilherme Martins Panayotou, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, que integra a presente ordem, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006.

(RHC n. 147.169/SP, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 20/6/2022.)

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Usucapião de Imóvel Objeto de Herança

Herdeiro que reside em imóvel a ser objeto de partilha pode requerer a usucapião do bem? Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a resposta é SIM.

Conforme dispõem as normas de direito sucessório, ocorrendo o óbito do indivíduo, abre-se a sucessão, transmitindo-se, desde logo, a herança aos herdeiros legítimos (na seguinte ordem: descendentes, ascendentes, cônjuge sobrevivente e colaterais, observados os termos do artigo 1.829 do Código Civil) e testamentários do falecido. 

A partir de então, passa a existir um condomínio sobre o todo unitário (também denominado acervo hereditário), sendo que, até a partilha, o direito dos co-herdeiros em relação à posse e propriedade da herança é indivisível.

No julgamento do Recurso Especial n.º 1.631.859, um dos herdeiros de imóvel em condomínio postulou a usucapião do bem, comprovando estarem devidamente preenchidos os requisitos para tal modalidade de aquisição de propriedade.

Por ter exercido a posse exclusiva do imóvel em nome próprio, agindo como se proprietário fosse (animus domini), pelo prazo ininterrupto de 15 (quinze) anos, e não tendo havido a oposição dos demais condôminos, restou reconhecida a legitimidade do herdeiro para postular a usucapião extraordinária do bem. 

Nos exatos termos do artigo 1.238 do Código Civil:

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.


Sobre usucapião, leia também (clique nos links):

Usucapião Urbana de Apartamento

Usucapião por Abandono do Lar

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Segue abaixo a ementa do interessante julgado do STJ:


DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. HERDEIRA. IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO POR CONDÔMINO SE HOUVER POSSE EXCLUSIVA.

1. Ação ajuizada 16/12/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73.

2. O propósito recursal é definir acerca da possibilidade de usucapião de imóvel objeto de herança, ocupado exclusivamente por um dos herdeiros.

3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial.

4. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC/02).

5. A partir dessa transmissão, cria-se um condomínio pro indiviso sobre o acervo hereditário, regendo-se o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, pelas normas relativas ao condomínio, como mesmo disposto no art. 1.791, parágrafo único, do CC/02.

6. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários.

7. Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão - o outro herdeiro/condômino -, desde que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02, quais sejam, lapso temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem.

8. A presente ação de usucapião ajuizada pela recorrente não deveria ter sido extinta, sem resolução do mérito, devendo os autos retornar à origem a fim de que a esta seja conferida a necessária dilação probatória para a comprovação da exclusividade de sua posse, bem como dos demais requisitos da usucapião extraordinária.

9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido.

(REsp n. 1.631.859/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/5/2018, DJe de 29/5/2018.)


segunda-feira, 4 de julho de 2022

Indenização por Erro de Diagnóstico

 Já tratamos aqui no ::BLoG:: sobre a Responsabilidade Civil dos Profissionais da Saúde e as Modalidades de Erro Médico - dentre as quais se encontra o erro de diagnóstico (clique nos links para ler).

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Acre (TJAC) condenou um laboratório de análises clínicas ao pagamento de reparação civil no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a um consumidor por falha na prestação do serviço. Conforme os autos do processo, o paciente era portador de doença grave, sendo que a biópsia realizada pelo laboratório fornecedor não detectou a existência de células cancerígenas na amostra analisada. Posteriormente, foram realizados 02 (dois) novos exames que tampouco demonstraram estar o paciente acometido de câncer maligno.

Diante dos diagnósticos equivocados, o adenocarcinoma acabou evoluindo e o paciente veio a óbito. No decorrer da demanda judicial ajuizada por seus familiares, outro laboratório analisou as amostras coletadas e restou evidenciado que, já na primeira biópsia, havia presença de câncer.

Logo, sendo OBJETIVA a responsabilidade do laboratório em razão da OBRIGAÇÃO DE RESULTADO, em face da previsão expressa do Código de Defesa do Consumidor, o fornecimento de diagnóstico errôneo - que, neste processo, ocorreu por 03 (três) vezes consecutivas - implica na condenação por danos morais, cujo valor foi transmitido aos herdeiros do paciente falecido. 


quinta-feira, 23 de junho de 2022

Direito Médico e o Consentimento Informado

Importante aspecto ético a ser observado na relação médico-paciente é a da participação deste nas decisões concernentes ao restabelecimento de sua saúde, de forma a exercitar o seu direito constitucional fundamental à autodeterminação. A concordância com o tratamento/ procedimento a ser realizado deverá se dar de forma expressa, através de documento próprio denominado "termo de consentimento informado" ou "termo de consentimento livre e esclarecido".

Para tanto, mostra-se imprescindível que o profissional médico preste todas as informações necessárias ao paciente, de forma clara, objetiva, verdadeira e precisa, de modo a que este tenha plana ciência de todos os benefícios e riscos/ implicações que poderão advir da terapêutica recomendada (tanto no presente quanto no futuro) bem como de alternativas viáveis (e disponíveis) àquele procedimento. 

O princípio da autonomia da vontade (oriundo do Direito Civil) diz respeito à possibilidade do indivíduo estipular livremente, e decidir de acordo com seus interesses. E para que seja exercido de forma plena pelo paciente, há de ser cumprido o dever de informação pelo médico, de modo mais completo possível. Assim, o termo de consentimento do paciente somente terá validade quando este receber todas as informações necessárias (de forma compreensível, sem termos técnicos) para que possa expressar - com convicção, segurança e consciência - a sua vontade.

Em sendo prestadas explicações de forma dúbia, genérica ou incompleta, o documento médico poderá ser considerado inválido, ensejando a possibilidade de condenação do profissional da saúde pelos danos ocasionados ao paciente em razão da falha no dever de informação.

NÃO BASTA O MÉDICO INFORMAR OS RISCOS E DIFICULDADES de determinado procedimento; É PRECISO QUE O PACIENTE COMPREENDA O QUE ESTÁ LHE SENDO DITO e participe ativamente das decisões referentes à sua vida. 

Inclusive, tratamos recentemente desse aspecto no artigo Assistência à Saúde: Humanização das Relações , também mencionado em Testemunhas de Jeová x Transfusão de Sangue (clique nos links para ler).

Segue abaixo a ementa de recente julgado do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.848.862, de relatoria do Ministro Bellizze), em que a Corte Superior, ao reconhecer falha no dever de informação, condenou um cirurgião e um anestesista ao pagamento de danos morais à família de paciente que veio a óbito:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO REALIZADO PARA RESOLVER SÍNDROME DA APNÉIA OBSTRUTIVA DO SONO (SASO). FALECIMENTO DO PACIENTE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. FALHA NO DEVER DE INFORMAÇÃO ACERCA DOS RISCOS DA CIRURGIA. CONSTATAÇÃO APENAS DE CONSENTIMENTO GENÉRICO (BLANKET CONSENT), O QUE NÃO SE REVELA SUFICIENTE PARA GARANTIR O DIREITO FUNDAMENTAL À AUTODETERMINAÇÃO DO PACIENTE. RESTABELECIMENTO DA CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. REDUÇÃO DO VALOR FIXADO, CONSIDERANDO AS PARTICULARIDADES DA CAUSA. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE.

1. O presente caso trata de ação indenizatória buscando a reparação pelos danos morais reflexos causados em razão do falecimento do irmão dos autores, ocasionado por choque anafilático sofrido logo após o início da indução anestésica que precederia procedimento cirúrgico para correção de apnéia obstrutiva do sono, a qual causava problemas de "ronco" no paciente.

1.1. A causa de pedir está fundamentada não em erro médico, mas sim na ausência de esclarecimentos, por parte dos recorridos - médico cirurgião e anestesista -, sobre os riscos e eventuais dificuldades do procedimento cirúrgico que optou por realizar no irmão dos autores.

2. Considerando que o Tribunal de origem, ao modificar o acórdão de apelação na via dos embargos declaratórios, fundamentou o decisum na ocorrência de omissão e erro material no acórdão embargado, não há que se falar em violação do art. 535 do CPC/1973.

3. Todo paciente possui, como expressão do princípio da autonomia da vontade, o direito de saber dos possíveis riscos, benefícios e alternativas de um determinado procedimento médico, possibilitando, assim, manifestar, de forma livre e consciente, o seu interesse ou não na realização da terapêutica envolvida, por meio do consentimento informado. Esse dever de informação encontra guarida não só no Código de Ética Médica (art. 22), mas também nos arts. 6º, inciso III, e 14 do Código de Defesa do Consumidor, bem como no art. 15 do Código Civil, além de decorrer do próprio princípio da boa-fé objetiva.

3.1. A informação prestada pelo médico deve ser clara e precisa, não bastando que o profissional de saúde informe, de maneira genérica, as eventuais repercussões no tratamento, o que comprometeria o consentimento informado do paciente, considerando a deficiência no dever de informação. Com efeito, não se admite o chamado "blanket consent", isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização das informações prestadas ao paciente, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação.

3.2. Na hipótese, da análise dos fatos incontroversos constantes dos autos, constata-se que os ora recorridos não conseguiram demonstrar o cumprimento do dever de informação ao paciente - irmão dos autores/recorrentes - acerca dos riscos da cirurgia relacionada à apnéia obstrutiva do sono. Em nenhum momento foi dito pelo Tribunal de origem, após alterar o resultado do julgamento do recurso de apelação dos autores, que houve efetivamente a prestação de informação clara e precisa ao paciente acerca dos riscos da cirurgia de apnéia obstrutiva do sono, notadamente em razão de suas condições físicas (obeso e com hipertrofia de base de língua), que poderiam dificultar bastante uma eventual intubação, o que, de fato, acabou ocorrendo, levando-o a óbito.

4. A despeito da ausência no cumprimento do dever de informação clara e precisa ao paciente, o que enseja a responsabilização civil dos médicos recorridos, não deve prevalecer o valor da indenização fixado pelo Tribunal de origem na apelação, como pleiteado pelos recorrentes no presente recurso especial, revelando-se razoável, diante das particularidades do caso, a fixação do valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada autor, acrescido de correção monetária desde a data da presente sessão de julgamento (data do arbitramento), a teor do disposto na Súmula 362/STJ, além de juros de mora a partir da data do evento danoso (27/3/2002 - data da cirurgia), nos termos da Súmula 54/STJ.

5. Recurso especial provido em parte.

(REsp n. 1.848.862/RN, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 5/4/2022, DJe de 8/4/2022).

(grifos nossos)


terça-feira, 21 de junho de 2022

Desenvolvimento Biopsicossocial do Ser Humano

O ser humano, que é a soma dos atributos genético-hereditários com os fatores ambientais, tem sua personalidade singular moldada pela forma com que reage aos estímulos, acontecimentos e experiências que passa a vivenciar e experimentar desde o nascimento, e que provavelmente o acompanharão pelo resto da vida. A partir da mais tenra idade, os processos mentais e físicos interagem constantemente e se influenciam mutuamente. Fatores como comportamento, estilo de vida (alimentação, exercícios físicos, meditação) e relação do indivíduo consigo mesmo, com os outros e com o mundo impactam diretamente em sua saúde.

Estudos demonstram que a conexão entre a mente e o corpo, quando não se encontra em harmonia, pode influenciar até mesmo no aparecimento de doenças. Hoje sabemos que ansiedade, depressão, úlcera, hipertensão, alergias, exaustão, dores de cabeça, indisposição e até queda na imunidade podem surgir sem qualquer base orgânica aparente: são os fatores psicológicos que deixam o corpo vulnerável.

O modelo biomédico tradicional, que analisa o paciente e a doença, tem sido substituído pelo modelo biopsicossocial, que busca tratar a pessoa em sua integralidade – nas dimensões física, mental, emocional e espiritual. Da mesma forma, a psicologia da saúde modernamente aplicada propõe uma abordagem holística que leva em conta o ser humano em suas perspectivas biológica, psíquica e social. Para além da interdisciplinaridade na análise e busca das causas da doença, a humanização da medicina com a participação ativa do paciente (por meio de uma comunicação bilateral, franca e aberta, visando a construção de vínculo e estabelecimento de rapport) é fundamental para a melhor escolha do tratamento, seu comprometimento em segui-lo, e consequente facilitação do processo de cura.

A Neurociência, cujo objeto de estudo primordial são os sinais elétricos, ligações sinápticas/ conexões neurais de um complexo sistema denominado cérebro – e todos os mistérios que até hoje o cercam, face às inúmeras, constantes e espetaculares descobertas da ciência –, nos mostra como as nossas vivências/ forma de pensar e sentir são capazes de alterar e interferir no desenvolvimento cognitivo (inteligência, memória, emoções). Isso nos aproxima de conceitos como autoconhecimento, empatia, acolhimento, solidariedade, além da auto-observação, pensamento positivo, busca da harmonia, da paz de espírito, da alegria de viver, imprescindíveis para termos uma vida plena e saudável em sua integralidade.


segunda-feira, 13 de junho de 2022

Taxatividade do Rol de Coberturas da ANS

 Há exatos 12 anos, iniciamos as postagens do ::BLoG:: com uma notícia acerca do mesmo tema objeto do artigo de hoje - Novas regras para os Planos de Saúde (clique no link para ler). Na ocasião, informamos que as Operadoras estavam sendo obrigadas a ampliar a cobertura básica dos planos individuais e coletivos, com a inclusão de 70 procedimentos inéditos à época, tanto médicos quanto odontológicos (dentre eles o transplante de medula óssea e a colocação de coroas dentárias), bem como o aumento do limite de consultas em algumas especialidades médicas.

Nesta data, iremos tratar sobre o julgamento ocorrido na semana passada, em que o Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos dos seus Ministros, entendeu pela taxatividade do rol de procedimentos com cobertura obrigatória pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). O debate girava em torno dos seguintes aspectos: considerar o rol como exemplificativo (o que estaria mais próximo da concretização das políticas públicas na área da saúde, conforme idealizado pela Constituição Federal de 1988) ou determiná-lo como taxativo (visando manter o equilíbrio econômico-financeiro do mercado de planos de saúde).

Importante dizer que, nos últimos anos, houve uma hiperjudicialização das questões envolvendo saúde, em razão das negativas, por parte das Operadoras, em fornecer determinados serviços/ procedimentos/ tratamentos aos seus conveniados. Levadas à apreciação do Poder Judiciário, muitas vezes as demandas são julgadas procedentes pelos Magistrados, e não raro os pedidos são deferidos já em sede de liminar.

Embora a Lei dos Planos de Saúde (Lei n.º 9.656/98) estabeleça que as Operadoras devem promover a cobertura obrigatória de todas as doenças listadas na CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), a qual emana da Organização Mundial da Saúde (OMS) e prevê exceções, não nos parece adequado que a ANS - órgão criado pela Lei n.º  9.961/2000, cuja competência é a de regulamentar as exigências mínimas e elaborar o rol de procedimentos de cobertura obrigatória - tenha poderes para restringir e excluir ainda mais coberturas assistenciais, além daquelas constantes da própria norma legal. 

SITE DA ANS - Verificar cobertura de plano

Essa prática, conforme entendimento explanado pela Ministra Nancy Andrighi em seu voto divergente, configuraria uma atuação abusiva e ilegal da ANS (que exara normas infralegais), colocando o consumidor conveniado - hipossuficiente e vulnerável - em desvantagem exagerada na relação de consumo, uma vez que a taxatividade lhe retira o direito de se beneficiar de todos os possíveis procedimentos e eventos em saúde que se façam necessários para o seu tratamento médico. Por certo que a ANS atualiza, de tempos em tempos, seu rol de coberturas mínimas; porém, não com a velocidade das inovações que a tecnologia apresenta frequentemente na área da saúde.

Um dos aspectos mencionados para a fixação do entendimento vencedor é a de que a estipulação de um rol tem por objetivo proteger os conveniados - tanto de evitar a sua submissão a procedimentos e tratamentos que não tenham respaldo científico, quanto no sentido financeiro, evitando aumentos excessivos. Isso porque o valor da mensalidade do plano de saúde leva em consideração o conceito de mutualidade e equilíbrio atuarial, sendo arbitrado após a realização de cálculos estatísticos e de probabilidade para fins de aferição da cobertura do risco. Em sendo o rol meramente exemplificativo (podendo ser interpretado de forma ampla e irrestrita), na visão dos Ministros que aderiram a esta tese, se tornaria bastante difícil a precificação, o que elevaria (e muito) o valor das parcelas mensais, inviabilizando a manutenção de muitos planos de saúde, especialmente os firmados pela população mais carente - o que também comprometeria a solvência das Operadoras privadas.

Aspecto que vinha sendo muito debatido no Judiciário até então diz respeito à seguinte questão: embora o plano de saúde possa estipular quais as doenças terão cobertura, é o profissional médico que está atendendo o paciente quem pode (e deve) indicar a melhor terapêutica a ser ministrada na busca de sua cura. Neste momento, impera a incógnita: como decidirão os Juízes diante dessa nova ideia? Há alguns meses escrevemos sobre os Planos de Saúde e Tratamento para Autismo. Como ficarão essas crianças que necessitam de tratamento multiprofissional para seu pleno desenvolvimento, o qual é desde sempre negado pelas Operadoras sob alegação de ausência de previsão das terapias complementares no rol da ANS?

O tema é complexo e muito provavelmente será analisado pelo Supremo Tribunal Federal, face a questão constitucional envolvida (direito à saúde). A nosso ver, ao tornar taxativo o rol da ANS - que prevê as coberturas mínimas - a decisão do STJ representa retrocesso na jurisprudência pátria, a qual, em sua maioria, reconhecia os direitos dos consumidores no que tange ao alcance dos tratamentos e terapêuticas mais adequados à sua condição particular, devidamente recomendados por seus médicos. É possível que aumente o número de demandas judiciais buscando a cobertura de exames, medicamentos, terapias. Mas como se portarão os Magistrados diante das futuras negativas dos planos fundadas no acórdão exarado da Corte Superior? Só nos resta aguardar as cenas dos próximos (e eletrizantes) capítulos. 

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Teses fixadas pela decisão do STJ:

1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;

2.  A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;

3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;

4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.


sexta-feira, 10 de junho de 2022

Assistência à Saúde: Humanização das Relações

A assistência à saúde vem experimentando importantes e substanciais mudanças nos últimos anos. Passou-se a verificar que a comunicação, informação e humanização das relações entre profissional e paciente possui estrita ligação com a maior adesão ao tratamento, em razão do estabelecimento de confiança e rapport.

Conforme a literatura médica, os modelos de assistência são divididos em: biomédico (a doença é tratada como uma relação causa-efeito, o corpo é visto como uma máquina), paternalista (o paciente não recebe muitas informações, é totalmente dependente do profissional que o atende), informativo (o profissional repassa informações ao paciente, mas nem sempre existe um diálogo) e comunicacional (em que o paciente é tratado em todas as suas dimensões – biopsicossocial). Muito embora o modelo biomédico ainda seja o mais utilizado em nosso sistema de saúde, o comunicacional, que avalia o paciente em uma visão holística e do qual participa efetivamente do processo diagnóstico e de cura, vem conquistando seu espaço.

A realidade tem mostrado que a criação e manutenção de vínculo entre o profissional da área da saúde com o paciente permite uma maior interação, dada a relação de confiança que se estabelece. Assim, o paciente poderá fornecer informações valiosas acerca da realidade que o cerca, seu comportamento, modo de vida e experiências que teve, as quais poderão ser fundamentais não apenas para compreender a origem da doença como também para escolher, em conjunto com o profissional da saúde, qual a melhor opção de tratamento para o seu caso, dentre as possibilidades que se apresentam, levando em conta suas características pessoais.

Em linhas gerais, a Psicologia da Saúde visa a promoção e manutenção da saúde, bem como a prevenção e tratamento de doenças. Busca entender como os fatores biológicos, comportamentais e sociais influenciam sobre a manutenção da saúde e desenvolvimento de doenças, por meio da análise de sua subjetividade, ou seja, do modo de vida do indivíduo e sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Sua atuação mostra-se de fundamental importância em hospitais, clínicas e universidades, para operar nos complexos processos doença-internação-tratamento e na dinâmica enfermo-família-equipe de saúde. Ademais, há de se averiguar diversos aspectos envolvidos no caso (sentimentos, desejos, fantasias, pensamentos, sonhos e conflitos) que podem ter causado a patologia, desencadeado a doença, agravado o quadro clínico, mantido a situação de adoecimento ou ser consequência da patologia.

A humanização nos serviços de saúde faz com que o paciente seja visto (e tratado) como um sujeito ativo na relação, e demanda o desenvolvimento de habilidades importantes como a sensibilidade, empatia, solidariedade e acolhimento por parte do profissional. Esta prática diferenciada, que consiste no diálogo em linguagem acessível, de modo a que o paciente compreenda, reflita e pondere em conjunto com o profissional que está lhe atendendo, visando o restabelecimento de sua saúde, certamente trará uma melhoria na qualidade dos serviços prestados.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Penhora de Bem de Família na Locação Comercial

Por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 1.307.334 em sede de repercussão geral, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de seus pares, fixou a seguinte tese:

TEMA 1.127. É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial.

Até então, era majoritário o entendimento de que, no caso do contrato de locação de imóvel comercial, prevaleciam o princípio da isonomia, o direito social à moradia e a observância do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, previstos na Constituição Federal - o que foi tema de artigo aqui no ::BLoG:: Locação Comercial x Bem de Família do Fiador (clique para ler).

Conforme o julgado, o fiador, quando da assinatura do contrato de locação - independentemente de ser residencial ou comercial -, tem plena consciência dos riscos que está assumindo, eis que a fiança é prestada de livre e espontânea vontade. Neste sentido, é sabedor de que seu patrimônio estará sujeito à constrição em caso de inadimplemento dos alugueis pelo locatário. Aliás, Nos Contratos, não confunda Fiador com Testemunha (clique para ler).

Ademais,  a Lei n.º 8.009/90 (que trata da impenhorabilidade do bem de família), ao dispor sobre as exceções à regra, não faz distinção entre a garantia locatícia comercial ou residencial, pelo que entenderam os Ministros (em sua maioria) pela constitucionalidade da penhora. Assim:

Art. 1.º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. (...)    

Art. 3.º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: (...)

VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. 

Segue a ementa do julgado do STF:

CONSTITUCIONAL E CIVIL. ARTIGO 3º, VII, DA LEI 8.009/1990. CONTRATO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL COMERCIAL. PENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR. RESPEITO AO DIREITO DE PROPRIEDADE, À LIVRE INICIATIVA E AO PRINCÍPIO DA BOA FÉ. NÃO VIOLAÇÃO AO ARTIGO 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. 1. Os fundamentos da tese fixada por esta CORTE quando do julgamento do Tema 295 da repercussão geral (É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3°, VII, da Lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6° da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000), no tocante à penhorabilidade do bem de família do fiador, aplicam-se tanto aos contratos de locação residencial, quanto aos contratos de locação comercial. 2. O inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/1990, introduzido pela Lei 8.245/1991, não faz nenhuma distinção quanto à locação residencial e locação comercial, para fins de excepcionar a impenhorabilidade do bem de família do fiador. 3. A exceção à impenhorabilidade não comporta interpretação restritiva. O legislador, quando quis distinguir os tipos de locação, o fez expressamente, como se observa da Seção III, da própria Lei 8.245/1991 – que, em seus artigos 51 a 57 disciplinou a “Locação não residencial”. 4. No pleno exercício de seu direito de propriedade, o fiador, desde a celebração do contrato (seja de locação comercial ou residencial), já tem ciência de que todos os seus bens responderão pelo inadimplemento do locatário – inclusive seu bem de família, por expressa disposição do multicitado artigo 3°, VII, da Lei 8.009/1990. Assim, ao assinar, por livre e espontânea vontade, o contrato de fiança em locação de bem imóvel – contrato este que só foi firmado em razão da garantia dada pelo fiador –, o fiador abre mão da impenhorabilidade de seu bem de família, conferindo a possibilidade de constrição do imóvel em razão da dívida do locatário, sempre no pleno exercício de seu direito de propriedade. 5. Dentre as modalidades de garantia que o locador poderá exigir do locatário, a fiança é a mais usual e mais aceita pelos locadores, porque menos burocrática que as demais, sendo a menos dispendiosa para o locatário e mais segura para o locador. Reconhecer a impenhorabilidade do imóvel do fiador de locação comercial interfere na equação econômica do negócio, visto que esvazia uma das principais garantias dessa espécie de contrato. 6. A proteção à moradia, invocada pelo recorrente, não é um direito absoluto, devendo ser sopesado com (a) a livre iniciativa do locatário em estabelecer seu empreendimento, direito fundamental também expressamente previsto na Constituição Federal (artigos 1º, IV e 170, caput); e (b) o direito de propriedade com a autonomia de vontade do fiador que, de forma livre e espontânea, garantiu o contrato. 7. Princípio da boa-fé. Necessária compatibilização do direito à moradia com o direito de propriedade e direito à livre iniciativa, especialmente quando o detentor do direito, por sua livre vontade, assumiu obrigação apta a limitar sua moradia. 8. O reconhecimento da impenhorabilidade violaria o princípio da isonomia, haja a vista que o fiador de locação comercial, embora também excepcionado pelo artigo 3º, VII, da Lei 8.009/1990, teria incólume seu bem de família, ao passo que o fiador de locação residencial poderia ter seu imóvel penhorado. 9. Recurso Extraordinário DESPROVIDO. Fixação de tese de repercussão geral para o Tema 1127: É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial. (grifos nossos)

terça-feira, 24 de maio de 2022

Direito Penal e Reconhecimento Fotográfico

Sempre que um crime é cometido, faz-se necessária a identificação do autor do fato. Nas ocasiões em que se proceder ao reconhecimento de pessoa, algumas regras deverão ser observadas, nos termos do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP):

Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

Recentemente foi noticiado que, no período de 01 (um) ano - outubro/2020 a dezembro/2021 -, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reverteu 89 condenações por irregularidades na identificação dos suspeitos. Conforme levantamento realizado pela Corte, na maioria dos casos o reconhecimento foi apenas fotográfico - ou seja, a suposta prova da autoria foi baseada apenas em imagens (que atualmente podem ser extraídas de redes sociais) -, o que vai contra o texto legal e resultou nas mencionadas absolvições e revogações de prisões.

A inobservância do procedimento descrito no artigo 226 do CPP é apta a ensejar injustiças. O reconhecimento meramente fotográfico (estático) exclui uma série de características pessoais que somente uma descrição pode informar: porte físico (peso, altura), trejeitos e expressões, sinais de nascença, tatuagens, eventual deficiência física, etc. Da mesma forma, deixar de colocar o suspeito ao lado de pessoas que com ele se parecem pode acabar por direcionar/ sugestionar vítima(s) e testemunha(s).

Importante lembrar que o sistema penitenciário brasileiro já foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um "estado de coisas inconstitucional." Somado ao alto índice de inocentes condenados injustamente no país, temos que a aplicação literal e obrigatória do artigo 226 do CPP mostra-se de vital importância para que se evitem erros judiciários graves, cujas consequências podem ser irreversíveis.

Decisão paradigmática foi proferida quando do julgamento do HC 598.886, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, a qual alterou a jurisprudência até então preponderante no STJ: o não atendimento aos ditames do artigo 226 do CPP invalida o reconhecimento do acusado feito em delegacia (em sede inquisitorial), não podendo servir de base para a sua condenação, ainda que confirmado na fase judicial. Assim, mostra-se imprescindível que outras provas submetidas ao contraditório a corroborem: reconhecimento presencial (sempre que possível), depoimentos, apreensão do produto do roubo ou furto, ou da arma do crime, entre outras.

Segue importante e elucidativo trecho da ementa do acórdão para conhecimento:


"(...) 2. Segundo estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis.

3. O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de "mera recomendação" do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório.

4. O reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial. E, mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no Código de Processo Penal para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato. (...)"


domingo, 15 de maio de 2022

Teoria do Multiverso x Realidade do Metaverso

Quem acompanha o universo cinematográfico de super-heróis da Marvel Studios já está familiarizado com o conceito de multiverso. Em longas-metragens recentes como Doutor Estranho e Homem Aranha (Longe de Casa, Sem Volta para Casa), somos apresentados a uma coleção de universos alternativos e paralelos, criados a partir de um evento que possui diferentes resultados possíveis (cada um deles dando origem a um novo universo ou dimensão, que podem ser infinitos) ou de viagens no tempo. Pura teoria. 

Já o metaverso é um conceito que se popularizou com a alteração do nome Facebook para Meta no final de 2021: trata-se de um universo virtual 3D que provavelmente será o futuro da Internet e irá revolucionar a forma com que as pessoas lidam com o espaço cibernético. Aqui, temos o universo online e o offline conectados e completamente dependentes entre si: nesse mundo digital, cada pessoa no mundo físico possui a sua própria identidade digital, ou seja, seu avatar, único e exclusivo. Pura realidade.

Nesse brand new world, as pessoas, através de seus avatares, terão uma vida semelhante à atual: poderão interagir, manter relacionamentos, trabalhar, negociar, praticar esportes, ter momentos de lazer e diversão, em ambientes criados por avançada inteligência artificial. Essa realidade virtual poderá ser acessada por sensores de movimentos (como o Xbox) e também por óculos de imersão em vídeo, de modo a que a pessoa efetivamente se sinta dentro daquele universo. Em que pese a existência de conceitos como o da realidade aumentada (vide Pokémon GO), efeitos visuais, hologramas e projeções especiais, os humanos seguirão existindo e interagindo na realidade física terrena, e não serão mágica e instantaneamente transportadas (através do tempo e do espaço) para um universo virtual.

No mundo jurídico, escritórios de advocacia poderão lançar suas sedes no metaverso com todas as características (sala de espera, gabinetes dos advogados, sala de reunião) de um escritório real. Após esse período de 02 (dois) anos de pandemia, em que encontros de trabalho, audiências, videoconferências e eventos jurídicos foram amplamente realizados através de plataformas como o Google Meet e o Zoom, é possível especular que essa conexão com o mundo virtual seguirá se acentuando? Como será construído o avatar que irá nos representar no metaverso? Por se tratar de uma extensão da pessoa humana, com seus direitos de personalidade, haverá proteção jurídica semelhante à do mundo da matéria? 

Será que a ficção científica está se tornando realidade? Para quem achava que os episódios da distópica série Black Mirror (Netflix) eram algo completamente absurdo, ilógico e irreal, a verdade é que muitos dos contos apresentados que eram tidos como absolutamente fictícios acabaram se concretizando muito antes do que o (pouco ou nada) esperado. De qualquer forma, para que possamos começar a ter algumas respostas aos muitos questionamentos sobre como serão as relações no metaverso - e, quem sabe um dia, no (até então) fictício multiverso -, teremos que aguardar a intensificação dessas interações entre o mundo real e o virtual.